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Fábrica de Histórias

por Closet, em 24.06.12

 

Isco Manjerico

 

Num típico páteo de alfama, encontravam-se rostos alegres, espalhados em grupos de amigos. Era Junho, as festas populares saiam à rua, com as cores garridas das bandeiras, as fitas coloridas e os tradicionais manjericos. 

Ao som de ruidosas gargalhadas, fumegavam já as sardinhas, servidas em fatias de pão e acompanhadas por copos de sangria. Era João quem as servia, sem ter mãos a medir para os inúmeros pedidos.

Alto e de cabelo curtinho, os seus olhos enormes azuis cintilavam um sorriso franco, próprio da juventude. Pelo canto do olho seguia Joana, que recolhia das mesas os pratos sujos, enquanto cantarolava as músicas das marchas liboetas que se ouviam nos autifalantes de rua. Joana abanava as ancas roliças, com um vestido curto bordado que lhe assentava como uma luva. João seguia-a, visivelmente embevecido. Havia meses que saiam juntos, mas ainda não tivera coragem de lhe fazer o pedido. Nessa semana tinha-se decidido e comprou um manjerico para lhe dar no dia de Santo António, com um poema dele escrito. Algo simples e sincero, que há muito guardava no peito, em sério risco de explosão. E escolhera a noite do santo casamenteiro, para lançar o seu isco e declarar a paixão.

 

Escrito para a Fábrica de Histórias.

publicado às 21:45

Fábrica de Histórias

por Closet, em 10.06.12

 

 

Tudo isto é fado

 

É Junho, uma tarde amena que antecipa mais um Verão. A brisa suave sopra entre as ramagens das árvores soltando os meus cabelos longos. Há o verde imenso da folhagem que me cerca, preso a hastes frágeis de troncos de madeira.

É aqui que te espero, paciente, neste banco enferrujado de tinta lascada. Sem relógio que me guie, ou calendário que me prenda ao tempo. Sou só eu e este nosso lugar encantado. Mágico. Nostálgico. Brindado por raios de sol, num amarelo vivo, brilhante. Aquecem-me a pele clara, como se de mil braços se tratasse, envolvem-me num abraço único, aconchegante. É este brilho que me sossega, protege-me da tortura constante. Porque o sangue que me corre nas veias, agitado, grita saudade. No final do dia, quando o sol foge, toma conta do meu peito. Impossível ignora-lo. Fervilha de tal forma intenso que tinge este lugar calmo verdejante, num imenso vermelho. Vivo, ardente. Queima lágrimas de ausência, flameja o sorriso das lembranças. Como os sete castelos que construímos no céu. «Um para cada dia da semana» dizias na tua voz aveludada. Eram assim os nossos castelos dourados, sonhos impossíveis que planeámos na ingenuidade de crianças. Mas a realidade, crua, sempre foi tão diferente do nosso conto de fadas. Corremos os continentes em busca das promessas derrotadas, e em cada um enfrentámos as batalhas mais temíveis do tempo com os cinco escudos invencíveis que esculpimos em noites de céu azul estrelado. Defendiam-nos do destino que nos separava. Nós lutámos sempre, com as únicas armas que tínhamos: o desejo e eterna vontade. «Não te esqueço» dizias-me quando partias. «Lembro-te sempre» abafava no meu peito, enquanto te acenava.

Tem sido assim o nosso mundo secreto imaginado.Todas as noites te sonho, todas as manhãs te espero aqui sentada. De alma içada ao vento, entre o verde esperança que me ampara e o vermelho vivo do coração onde te guardo.

 

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias.

publicado às 23:20

Fábrica de Histórias

por Closet, em 28.05.12

 Safari

 

África sempre foi o Continente que mais nos fascinou. Ambos nutríamos uma paixão pelas suas paisagens infindáveis, pela imponência dos perigosos animais selvagens, pelas tribos que o povoavam e os seus hábitos. Tudo naquele Continente causava emoção e, por esse motivo, ano após ano, íamos conhecendo um novo país, partíamos numa nova aventura.

Já tínhamos programado aquela viagem ao Botswana há muito tempo mas, por qualquer razão, esta tinha sido sempre adiada.

Finalmente lá estávamos nós, munidos da máquina fotográfica e câmara de filmar, cada vez mais sofisticadas, garantindo-nos de regresso a casa um testemunho vivo das cores de África.

O Guia esperava-nos pontualmente, às 8h no átrio do hotel, no dia marcado para o tão aguardado Safari ao Chobe National Park. Era um passeio de 3 dias onde iríamos pernoitar duas noites num Lodge exótico no meio da savana. Um sujeito alto, magro, com a pele negra escura, e de camisa impecavelmente branca, aparentava uns 40 e poucos anos e apresentou-se num inglês coloquial. Pediu-nos para esperar por um casal que estava atrasado.

O nosso grupo era de apenas 6 pessoas que estavam hospedados no nosso hotel, um casal inglês de meia idade e um casal de cerca de 35 anos francês, e faríamos a viagem num jipe preparado para esta lotação. 

Apesar dos 33º que se faziam sentir já aquela hora do dia, e sem correr uma única aragem, a viagem correu bem. O Guia ía descrevendo como iria ser o nosso dia, as precauções que deveríamos ter, o percurso e respectivas paragens.

Foi um dia inesquecível, conseguimos ver de perto animais como elefantes de grande porte, búfalos, girafas e zebras. 

Por volta das 18h chegámos ao Chobe Park. O hotel era composto por luxuosos bungalows de madeira e tectos exóticos, com uma casa de campo central que servia simultaneamente de lounge e de refeições. Estávamos exaustos e pegajosos do bafo quente colado à nossa pele empoeirada, emanando um odor insuportável de terra misturada com o suor. A miragem do banho revelava-se cada vez mais um paraíso apetecido. 

Jantámos no restaurante com outros turistas que também lá se encontravam em expedições Fomos deitar-nos pelas 23h00. Estávamos efectivamente cansados e tínhamos de acordar novamente  cedo na manhã seguinte.

A noite estava quente, talvez uns 26º, e não corria uma brisa. A lua parecia desenhada num círculo perfeito e iluminava, como um candeeiro gigante, o céu azul-escuro repleto de estrelas brilhantes. O único barulho que se ouvia provinha dos pequenos animais escondidos por entre as ervas do mato, grilos e gafanhotos falavam entre si, tornando aquele lugar verdadeiramente mágico.

A cama em dossel acolheu os nossos corpos fatigados , de tal forma confortável que me deixei adormecer mal caí na cama.

 

A meio da noite acordámos sobressaltados. Um grito agudo, histérico, que não cessava. Um grito de mulher em pânico, aflita. Corremos para fora do bungalow, à semelhança de outros tantos turistas, mas era impossível detectar de onde vinha o grito. O nosso Guia também apareceu assustado perguntando-nos se estava tudo bem.

Ao fundo apareceu a inglesa, por detrás de uns arbustos com a camisa de noite manchada de sangue. O seu rosto pálido exibia um estado de choque e paralisia, o cabelo estava desgrenhado e as mãos tremiam esticadas também sujas de terra e de sangue.

Corremos até ela, que não conseguia pronunciar qualquer palavra, gemendo algo imperceptível enquanto apontava assustada na direcção do mato….

- Alguma criatura atacou-a? – perguntei-lhe sem receber qualquer resposta. Apenas consegui perceber “Charles”. Uma senhora da recepção agarrou-a e conduziu-a ao Lodge.

Seguimos o nosso Guia que empunhava uma lanterna e deparámo-nos com o Charles no chão, agachado, de roupa rasgada, com as mãos e cara cobertas de sangue. Pierre, o francês, encontrava-se junto dele com uma arma comprida pousada no chão e prendia as suas mãos e pés com cordas grossas.

Ao ver-nos fez sinal para nos afastarmos, “ne vous approchez pas”, dizia de semblante carregado mas com um ar vitorioso. O Guia transpirava de nervoso e a medo fez-lhe sinal para se aproximar. Trocaram palavras enquanto Pierre colocava uma rede grossa em volta do corpo de Charles que jazia imóvel no chão.

O Guia ajudou Pierre a transportar o corpo enredado com a ajuda de um tronco, como se de um animal se tratasse. Pediu-nos para regressarmos ao hotel que já nos explicaria tudo.

Quase uma hora depois o grupo de cerca de 20 turistas hospedados no Chobe Park reuniu-se no átrio do Lodge e ficámos a saber que Charles era um assassino perigoso, perseguido internacionalmente.

Chocados nem queríamos acreditar. Ainda perguntámos ao nosso Guia:

- Mas ele vinha matar o quê aqui?

Foi quando o Guia nos fez sinal para esperarmos e ficarmos mais um pouco. Quando todos se recolheram aos bungalows ficámos apenas nós, a loira inglesa amparada pela senhora da recepção que a abraçava, Pierre e a sua mulher.

Pierre explicou-nos no seu inglês, soletrando devagar cada palavra para ter a certeza que estávamos a compreender tudo o que dizia.

Disse-nos que era um agente secreto, caçador especializado de Lobisomens, e que já há algum tempo andava no encalço de Charles. Naquela noite apanhou-o em plena transformação, tal predador em caça de alimento. Tinha caçado uma gazela e não sabia o que poderia suceder a seguir.

A sua mulher desta vez seguiu-o e assistiu a tudo, horrorizada. Pierre explicou-nos que os lobisomens não têm sempre consciência do seu estado, apenas quando se aproxima uma noite de lua cheia sentem a necessidade de caçar. Na maioria das vezes nem sequer têm memória de quando foram atacados e transformados e passam a conviver com a sua condição da melhor maneira que conseguem. Pierre acreditava que Charles devia ter sido mordido há cerca de 10 anos, altura a partir da qual começou a fazer frequentes safaris e expedições aventura.

- E agora? – Perguntei em pânico – está morto?

- Não – respondeu Pierre sorrindo – ele não tem culpa do que lhe aconteceu. Esta bala apenas o adormeceu e o sangue que ele tem é da gazela que matou com os próprios dentes.

 

 

Texto escrito para a Fábica de Histórias

publicado às 00:46

Fábrica de Histórias

por Closet, em 06.05.12

 

 

Escadas

 

Costumo pensar que ser mãe é estar sempre a subir escadas.

 

Sou mãe há 10 anos e tenhos dois rapazes. Tem sido uma boa escalada, admito!

Não pelo cançado, que não me vence, mas raros são os dias em que não me questiono sobre a minha capacidade de ser mãe. Talvez porque a minha mãe tenha morrido cedo e eu não tenha dela qualquer imagem, talvez porque olho em redor e percebo que nem todas nós, mães, sabemos o que ser mãe significa. Esta capacidade que me aterroriza ultrapassa a genética, o ADN ou o grupo sanguíneo. Ser mãe é tão mais do que isso...

Quando me falam do parto, das primeiras semanas, das noites em branco por dormir ou dos choros a fio, eu sorrio. Nada, nessa altura, me assustava. Ainda estava nos primeiros degraus, demasiado concentrada na sua sobrevivência, em dar-lhes de comer, pô-los a dormir, pega-los ao colo horas a fio para não chorarem. Chamam-lhe instinto, e talvez seja, não existiu em mim uma racionalidade efectiva, não precisei de balanço, posso dizer que eles apoderaram-se de mim e me puxaram. 

 

Hoje são autónomos, ou quase. E até parece, por vezes, que fazem tudo melhor do que eu. Verdadeiros perfeccionistas, saltam degraus sem avisar, e eu, nem sempre preparada, tenho de correr, para os alcançar.

Agora, e cada vez mais, assumo a minha maior fragilidade em ser mãe. As exigências são muitas, demasiadas. Detectam cada erro, reclamam cada falha. Ou porque estou atrasada, ou porque não consegui ligar a nova box XPTO da televisão, ou porque não percebo as instruções de um jogo da consola, ou porque não sei ligar o quadro da electricidade... Um universo de dificuldades onde me sinto tantas vezes apavorada. «Sou só uma, não sei fazer isso, não consegui chegar antes...» justifico-me com uma aparente calma, mas de quem no interior se sente pressionada. Por vezes mesmo aprisonada, da necessidade de saber fazer, de conseguir chegar. E aproveito cada momento em que abrandam o passo para respirar fundo, descansar o corpo que treme e focar-me novamente na escalada.

 

Porque no meio dessa luta vem outra ainda mais íngreme, sim, porque ser mãe é mesmo isso, é estar sempre a subir escadas. 

 

E agora que já decidem, têm opinião, força e vontade? Como os irei conquistar? Será que me vão ouvir? Porque não acredito em regras autoritárias para educar. E é nessa brincadeira que levo com eles, em que falho tanto ou mais do que eles, que me sinto muitas vezes uma criança. De mamy, passo a nany e sou uma espécie de irmã, companheira de gargalhadas, de danças e músicas esquisitas, de festas com os amigos cá em casa, de passeios onde vai um, outro e depois já são vinte, de trambolhões em patins em linha no meio da estrada. Eu e eles, não somos diferentes e peço-lhes tantas vezes para não se afastarem, acompanharem-me lado a lado. 

 

Eles estão sempre lá, vejo-os no degrau acima do meu, persigo-os desenfreada no pânico de os perder de vista. E sei que nada me vai arrastar daquela caminhada. Quais ventos fortes? Qual  piso escorregadio? Seguro-me firme, porque a minha vida é agora aquela escada onde subo, passo a passo, os degraus prioritários de os fazer felizes.

 

Costumo dizer que ser mãe, é subir escadas. Por vezes ando triste, cansada, mas tudo se evapora quando abraço os seus sorrisos.

 

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias.

 

 

publicado às 23:16

Fábrica de Histórias

por Closet, em 30.04.12

 

Não te entendo

 

"Não te entendo" repetias desesperado.

Eu repetia novamente, soletrava na minha língua. Repetia depois na tentativa de pronunciar a tua língua, ou noutra que poderíamos compreender os dois. 

Mas música abafava a voz rouca e as bocas entregavam-se desamparadas, sedentas, esquecendo as palavras que surgiam desconexas, sem sentido.

Ali estávamos nós, confusos, um em frente ao outro, deixando que os corpos traduzissem os sentidos. 

"Quem és tu?" pensava em breves segundos enquanto me perguntavas algo também ao ouvido.

 "Não te entendo", olhava-te encolhendo os ombros. Tu encolhias os teus e puxavas-me para os teus braços. Sorrias, e os olhos profundos abraçavam as palavras que não decifravas. Sorriam e vertiam o aroma do improvável, a certeza do impossível. As mãos cegas, deslizavam sôfregas, enfeitiçadas pelo ritmo que vibrava nos corpos incendiados. Corroía de desejo o espírito inquieto, talvez insatisfeito. "Infeliz?" percebi que perguntavas, num olhar penetrante que pedia muito mais do que palavras, num desenrolar de frases seguidas que eu já não compreendia. 

Mas tentava. Queria tanto comunicar contigo...

Como podia explicar-te a atracção que sentia naquele momento alucinante? 

Não podia. Nem na minha língua o conseguia. O inexplicável seduzia. Não me importava mais nada. Tu cantavas e rias. Enquanto me viravas e reviravas, sentia o teu peito a ferver nas minhas costas, os teus lábios no meu pescoço, perdiam-se na orelha que beijavas enquanto sussurravas ao meu ouvido. Não entendia uma palavra, mas acompanhava os teus passos, por instinto. Porque todos os teus gestos, surdos-mudos, desaguavam num imenso sorriso. 

"Desisto", pensei impotente, no cansaço de não me fazer compreender. O meu nome, quem sou, o que faço. Nada. Desisto! Decidi entregar-me em branco, vazia. Como se acabasse de nascer. Aceitaste-me. Aceitei-te. Num pacto gestual inconfundível, tacteámos no escuro. Despidos de quaisquer palavras que nos identificassem e restringissem.  Assim éramos um para o outro, dois corpos apenas, sem história, sem rumo, sem futuro.

Não sei como, nem quando, mas um dia procuro-te.

 

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias.

 

 

 

publicado às 00:59

Fábrica de Histórias

por Closet, em 16.04.12

 

 

“Sputnik, meu amor”

 

“Sputnik, meu amor” foi o primeiro livro que li de Haruki Murakami (e depois casei-me com ele para a vida!!)

 

Perturbante é talvez a primeira palavra que me surge. Viciante é a sensação que deixou depois da última página.

Os ingredientes, misturados numa escrita cativante e repleta de simbolismos, resultam numa história envolvente com personagens de almas inquietantes e desencontradas.

 

Desde o início invade-me a estranha impressão de conhecer o narrador, como se estivesse sentada num sofá de um bar a conversar com um amigo que não vejo há muito. E é com a mesma indecisão que, ou se pega na bebida, ou se puxa do cigarro, que é trocada por vezes a ordem dos acontecimentos. Mas talvez a ordem aqui não interesse para nada.

 

Durante a conversa ele fala-me do conforto do amor, da intensidade do desejo e da amargura da solidão, tendo como ponto de partida e de chegada a sua amiga Sumire. Aquela que ama e deseja desmesuradamente. Aquela que lhe foge por entre os dedos, silenciando o seu mundo e roubando-lhe a cor.

Mas na história ele é apenas um, dos três seres solitários que orbitam como satélites uma rota paralela, ora em busca, ora em fuga, de si mesmos e uns dos outros.

Através das suas palavras vejo claramente, como se estivesse na minha frente, a fragilidade voraz de Sumire: uma figura delgada com orelhas perfeitas e de sobrolho franzido. E sinto, incomodada, a frustração do desejo que transpira por ela, como boomerang, vai e volta, em convulsões amordaçadas.

É pelas palavras de Sumire que primeiro conheço Miu, a mulher que a arrebata de paixão: um ser misterioso que é desbravado ao longo da história que me conta. Surpreende-me o retrato pintado dela pelas palavras apaixonadas de Sumire, um ser forte e sofisticado, em oposição à Miu que ele me descreve, um ser belo e simples mas ausente de vida, como “uma concha vazia”.

 

O pano de fundo da sua história é uma viagem onde ele acaba, imprevisivelmente, por entrar. E pelas suas palavras dou por mim a vaguear nas encostas da ilha grega, repleta de mistério e magia, onde descreve cada local, como se de um ser vivo se tratasse.

Tudo o que sente é reflectido em lugares quotidianos. Miu lembrou-lhe “um quarto vazio depois de toda a gente se ter ido embora”, eles aproximaram-se com cumplicidade “como qualquer jovem casal de amantes que se despe em conjunto”.

 

A certa altura, sou inesperadamente agredida pelo seu abandono da vida. Ele inflige-se numa morte interior, mergulhando no silêncio abrupto das recordações.

 

No final da história, fico com a sensação de quem bebeu a noite inteira e já não sabe onde está. Confusa, páro para pensar. Também o meu amigo já não se encontra no bar. É apenas um reflexo num espelho.

- De alguma forma conseguiu trespassá-lo, para encontrar-se novamente no outro lado, onde o mundo voltará a ter cor.

Foi isso que pensei quando saí pela porta do bar.

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias.

publicado às 00:39

Fábrica de Histórias

por Closet, em 09.04.12

 

Um serão em família

 

Já estávamos em cima da hora para o jantar de anos do nosso amigo. Eu, a minha sogra e os miúdos agarrávamos os casacos, a mochila com as consolas, o presente e os ovos de chocolate e as amêndoas da Páscoa. De braços ocupados, fechámos a porta de casa num movimento firme e decidido. Pumm! Tenta-se dar a volta a chave para fechar. Nada. Novamente. Nada.

- O que se passa? – Pergunta a minha sogra intrigada tentando rodar a chave na ranhura.

- Upsss… Acho que a minha chave ficou lá dentro, na fechadura.

 

E assim começou um serão diferente.

O frio apertava e as nuvens ameaçavam chuva a qualquer instante. Os miúdos, sempre convenientes, gritavam em alto e bom som “agora vamos dormir na rua?”. E na verdade a perspectiva não era a melhor, já que as chaves da garagem também estavam no interior e toda a casa tinha as portadas fechadas.

 

Os meus vizinhos, sempre prestáveis, ofereceram-se logo para ajudar. Ele, dentista de profissão, apareceu com uma caixa de ferramentas em punho e conseguiu de facto desmontar o aro da fechadura. Mas a porta continuava fechada. Ao seu melhor estilo de assaltante-nas-horas-vagas também tentou abrir a porta com um cartão como se vê nos filmes, mas dado que não se tratava de caries e assuntos relacionados, o seu sucesso foi zero.

 

Entretanto chegavam familiares dos meus vizinhos com filhos, chega um, chega outro, e todos vão desfilando pela minha porta, dando sugestões de abertura. Optámos por ir para as traseiras tentar arrombar a janela da cozinha. Voltam as ferramentas e agora já mais 3 homens para ajudar à coisa. A minha vizinha, preocupada com o frio e a chuva que agora caía, fez questão que entrássemos para dentro de casa e onde deixei à entrada os sacos do presente, dos ovos e das amêndoas da Páscoa ocupando todo o hall de entrada. Os miúdos já corriam desaustinados com os outros miúdos, espezinhando o corredor, e eu fui conduzida para a sala. Lá, uma mesa enorme estava elegantemente posta para o que deveria ser um agradável jantar de família, isto se nós não aparecêssemos para estragar. Um irmão, ou cunhado, ou primo (não perguntei quem era), sentado ao meu lado no sofá mostrava-me a rir o filme que gravou no seu i-phone dos outros três a assaltarem a minha casa. Mostrei-lhe os dentes por delicadeza e continuei à procura do telefone dos bombeiros. As quatro mulheres irmãs, ou cunhadas, ou primas, circulavam pela sala olhando para mim de alto a baixo e questionando-se seriamente se eu ficaria para jantar, convite que gentilmente declinei da minha vizinha.

 

Telefonema para os bombeiros, lá os consegui convencer a vir a minha casa, ainda que teriam de trazer as autoridades. “Meus senhores, tragam quem quiserem, o Super-homem, o Sarkosy, o Cristiano Ronaldo, mas venham abrir-me a porta!”

E ali estávamos nós, na quinta-feira à noite, véspera de sexta-feira santa, em casa dos meus vizinhos. Eu, a minha sogra, os meus dois filhos e finalmente o meu marido (que chegou com aquele ar de quem espuma “o que é que fizeste agora?”).

 

Os bombeiros chegaram num carro enorme e, num ápice, um sujeito fininho empurrou a portada para cima e com um jeitinhozinho… Tchanan! Abriu a janela da cozinha, perante o espanto dos familiares do meu vizinho, irmãos, cunhados ou primos, que tinham experimentado quase todas as ferramentas existentes no mercado (menos o jeito-para-a-coisa).

 

As autoridades foram canceladas e estávamos novamente dentro de casa com satisfação, nossa e dos nossos vizinhos que puderam finalmente jantar em família sossegados, ainda que com uma hora de atraso. Ainda nos perguntaram amavelmente se desejámos jantar com eles e quase, quase pensei em aceitar passar aquele serão em família, dos outros!

 

 

Testo escrito para a Fábrica de Histórias (baseado em acontecimentos reais!)

publicado às 00:41

Fabrica de Histórias

por Closet, em 01.04.12

 

Moulin de la Galette (1889), Toulouse-Lautrec 

 

Nos teus braços

 

- A menina dança?

A tua voz aveludada percorria-me a pele. Não conseguia evitar estremecer, arrepiada.

Queria dizer-te que sim, que dançava. Claro que dançava! Contigo fazia qualquer loucura, saltava do cume de uma montanha para o abismo. De olhos vendados, nem hesitava. Mas não disse nada.

A música tocava alegre e os corpos à nossa volta balançavam como os pendões de um relógio, ritmados. E nós aqui, sentados, a olhar um para o outro. Imóveis, encantados.

Os risos ecoavam pela noite, iluminando os rostos nervosos, apaixonados, de quem dançava uma valsa por instinto, sem pensar. Um passo para o lado, outro para o outro. Tão simples. Era assim que dançavam os comuns mortais. Era uma valsa, nada mais.

Olhavas-me. Fixamente. Sei que tentavas descobrir exactamente o que estaria a sentir naquele momento. Se desejaria mais do que uma valsa quando as nossas mãos se tocassem para me conduzires? O que aconteceria quando me enlaçasses a cintura, segurando-me junto ao calor do teu corpo? Sim, sei que pensavas como conseguiria evitar tremer com a tua respiração no meu pescoço, os teus lábios a centímetros dos meus.

Desafiavas-me. Com impetuosidade.

O teu sorriso rasgado enfrentava o meu. Empurrava-me, como um vento forte que de repente soprava, de tal forma era o seu poder. E a voz persistente, mágica, voltava à ribalta, deixando-me a tremer.

Nada quebrava aquele instante, enquanto a multidão dançava e os meus olhos perdiam-se nos teus.

Seduzias-me, numa espécie de compasso lento, sei que irias despir habilmente o meu vestido apertado naquela praça, irias romper violentamente a minha pele e furtar a minha alma agitada.

Iniciava agora uma nova valsa. Levavas-me na melodia que emanavam os teus braços, inconsciente, feliz.

Sei que morreria ali, aquela noite, nos teus braços.

 

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias.

 

 

publicado às 23:37

Fábrica de Histórias

por Closet, em 26.03.12

 

Ser Primavera

 

Não era tarde, nem cedo, era a hora exacta. Aquela em que eu já a esperava.

Ela iria entrar pela porta da frente, de mansinho, e inundar a casa com o seu aroma floral, vestida com as habituais cores pastel, que esvoaçavam.

E assim entrou sem me espantar, de óculos escuros enormes, que lhe roubavam o rosto, iluminado pelo sol.

Acenei-lhe do fundo das escadas, como se não soubesse que viria:

 “Vera! Que saudades!” disse ainda com a voz rouca de sono.

E ela correu pelas escadas, aquecendo subitamente o meu quarto e libertando aquele perfume inebriante a alfazema que me confortava. Sorria, a Vera sorria sempre. Com um ar talvez inquieto, ou ansioso. De quem sabe bem o que quer, mas ainda não sabe como.

A sua voz soltou-se rapidamente como o cântico de um pássaro selvagem, falava agora encantada, e gesticulava, como a brisa do vento ondulando um campo de trigo. Acompanhei-lhe os movimentos com os olhos e tentei seguir-lhe o rasto que deixava. Estava apaixonada, dizia-me. Podia ver no seu rosto o planar feliz de uma andorinha num céu azul celestial. Dizia que ele era envolvente, escaldante, podia afirmar que era mesmo o seu destino.

Sentada na minha cama, Vera confidenciava-me convicta este amor inesperado. Sempre fora algo tímida, mas por vezes algo nela explodia, como uma imprevisível chuva de Abril. E tudo nela podia desmoronar-se a qualquer momento, o céu tornar-se cinzento e o sol, encoberto, chorar.

Mas em breve tudo iria mudar, dizia, quando de repente uma buzina lá fora apitava.

De cabeça de fora da janela, Vera gritava “aqui em cima” e puxava-me para o parapeito da janela onde se debruçava.

Ajeitei os cabelos desalinhados e puxei as alças da camisa de dormir amarrotada.

Um raio de sol quente atingiu-me de frente, no peito, e por segundos encadeou-me os olhos de claridade. Ainda tonta, descobri um vulto moreno, alto e musculado que nos acenava. Os seus olhos azuis eram como faróis que guiavam qualquer barco à deriva num mar alto e o sorriso… O sorriso era perfeito, despido e rasgado.

“Quem é?” Suspirei ainda enfeitiçada.

“É o Verão! De quem eu falava”.

 

(Moral da história: Para ter um Verão, precisas ser Primavera!)

 

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias.

 

publicado às 00:53

Fábrica de Histórias

por Closet, em 18.03.12

 

Já escrevi sobre o meu pai para a Fábrica, sobre o tema herói, aqui.

Apresentei-o a ele, a nós, com nomes fictícios.

Se ficou muito por dizer? Tanto!

Decidi escrever hoje sobre coisas mais divertidas, porque vivemos os dois sozinhos durante 5 anos e não me lembro de estar zangada com ele mais do que 20 minutos! Não é propriamente uma história, são histórias da nossa vida!

 

 

As coisas que o meu pai consegue

 

Tirar-me do sério (a nossa conversa há 1 hora atrás)

- "Mas filha, vamos almoçar amanhã porquê, se vamos almoçar na 4ª feira com a tua irmã?"

- "Paizinho, porque é dia do pai e eu costumo oferecer-te o almoço, lembras-te?"

- "Mas já vamos na 4ª feira, para que vamos almoçar duas vezes seguidas?"

- "Pai, é DIA DO PAI! Estás a dizer que não queres vir almoçar comigo?"

Ele vem, pronto, ele vem, não muito convencido do "para quê" mas vem... 

 

Dar-me a volta

Vinha eu eufórica com um panfleto de um curso de teatro juvenil os Lobitos, eis que ele convenceu-me a substituir esse curso por... alemão.. isto com 14 anos ... (é que tem tudo a ver, e sentia-me uma verdadeira aberração sempre que pronunciava algo em alemão junto dos meus amigos).

 

Ver sempre o lado positivo 

E nesta podia dizer muita coisa... mas não esqueço quando ele esteve internado há 2 anos com um grave problema circulatório, no qual estava em risco a amputação de uma perna ou pé ou dedo.  

- "Filha, olha, é só um dedo!"

- "Mas tem mesmo de ser?"

- "Oh filha, deixa lá, que falta me faz?"

 

Substituir um GPS

E aqui tenho de tirar-lhe o chapéu. Para qualquer lugar novo onde eu vá sozinha ele faz questão de traçar-me o caminho e descreve-lo pormonorizadamente, com direito a "faixa de 2 sentidos" e "rua de sentido proibido" (ok, isso é importante para mim) e a locais onde posso estacionar, descrevendo as cores e formas do sinais de trânsito desse local. Posso dizer que esta tarefa muitas vezes requer-lhe uma ída prévia ao local (sim, porque para ele o pc é um objecto desnecessário e o googlemaps é uma modernice fajuta).

 

Dormir na sala 1 semana

e não, o quarto não estava com infiltrações, pintado de fresco ou com algo corrosivo no interior... foi mesmo só porque uma pequenininha osga pernoitou no quarto dele sem pedir licença, osga essa que nos obrigou a matar e mostrar-lhe o cadáver... ainda assim fez uma semana de luto ao quarto, não fosse as amigas dela virem ao funeral...

 

Dizer as coisas mais insensiveis com a maior naturalidade

e pior sem perceber que as diz...

- "oh filha, pois habitua-te às dores, olha que já não vais para nova"

- "pfff"

 

- "Mas estás a fazer esse curso de escrita há tanto tempo para quê?" 

- "Porque eu gosto, é um escape"

- "Mas não era melhor vires para casa sossegadinha cuidar dos miúdos?"

- "Pai, eu disse escape, e eu gosto de escrever"

- "Mas não podias escrever em casa?"

 

Andar em casa de robe em pleno Agosto

e de vassoura na mão, porque a minha gata ficou doente e atacava (e estava mesmo doente, vá)... mas lembrar-se de prender a gata na varanda, hã?? nãaaaa... Lá tive eu de vir recambiada de um campo de férias para salva-lo!

 

Ser incovenientemente sincero

- "Pai, lembras-te da minha amiga Susana?"

(depois de várias dicas e sorrisos da Susana)

- "ahhh já sei, olá Susana... mas naquela altura tu eras muito gorda, não eras?"

- "Pai, ela estava grávida..."

- "Ahhh, mas era gordinha"

 

No dia do meu segundo parto, cesariana marcada, no meu quarto do hospital:

- "Filha, já estás aqui, agora vou comer qualquer coisa ao bar que estou cheio de fome"

- "Pai, eu também não como nada há 10 horas e não quero ficar aqui sozinha no quarto à espera"

- "Eu vou só comer, depois se te vierem buscar tu vais lá com eles, não te preocupes que eu fico aqui à tua espera"

 

Ser mais despistado que eu

e aqui é dificil...

- "Deve estar para ali" (o carro)

- "Pai, ali onde? Já passámos por ali."

- "Ali, já passámos por ali?... ah espera, eu vim de autocarro"

 

Ter um acidente num autocarro

e lá fui eu busca-lo à unidade de ortopedia de Santa Maria porque o autocarro onde ele ia bateu, uma senhora caiu-lhe para cima e fez-lhe uma luxação qualquer no pescoço (a senhora, note-se), para além disso ainda esteve em observação devido a possíveis cortes da chuva de vidros que levou causada pela queda da dita senhora que partiu um painel junto à porta (a mulher devia ser um bizonte...). Quando lá cheguei, com direit a crachá da ala de ortopedia só me disse:

- "já viste isto? vai uma pessoa sossegada num autocarro..."

 

 

E poderia continuar a contar histórias do meu pai. De como sabe o nome de todos reis, e presidentes, e ministros, os nomes e capitais de todos os países e principais monumentos... "Filha, não me digas que não sabes?" E eu? Sou uma nódoa...  De como passávamos as tardes de Sábado a beber umas cervejas e comer tremoços, ele com o Expresso relatando-me as notícias que eu a fingir ouvir enquanto folheava as revistas sociais! Dos nossos almoços ao Domingo de cozido à portuguesa no restaurante de sempre, dos passeios que dávamos sem destino ao fim-de-semana onde a conversa nunca se esgotava, normalmente ele a tentar cultivar-me! Mais do que um pai, é um companheiro único, incomparável... E eu? Às vezes sou resmungona, mas tenho a sorte dele nem ligar e telefonar-me todos os diazinhos e estar sempre pronto para o que eu precisar.

 

 

Testo escrito para a Fábrica de Histórias.

publicado às 22:19


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