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Fábrica de Histórias

por Closet, em 22.03.10

Arriscar

 

Dirigia-se para mim com aquele ar cabisbaixo, puxando para trás o cabelo que caía para os olhos, num movimento lento, pausado. Caminhava devagar, como se os próprios passos fossem pensados, um a seguir ao outro.

- Um duplo - pediu-me, empurrando o copo vaziu de whisky que trazia.

- Para aquecer ou para esquecer? - perguntei-lhe agarrando o copo com firmeza.

Olhou-me de lado, desconfiado.

- Conhecemo-nos? perguntou cravando os seus olhos embriagados nos meus.

Demorei a responder. De propósito. Como que a testar a sua curiosidade.

- Talvez - disse revirando os olhos e servindo-o de whisky - isso importa?

- Não - responde baixinho. Nada lhe importava. Os amigos foram embora depois de mais uma noite de copos. Mais uma. Uns flirts, um jogo de snooker, copos, cigarros. No final todos voltavam para as suas casas. Para uma cama partilhada com um corpo quente, que se moldava ao deles.

Tinha sido mais uma noite dessas, mais uma despedida de solteiro, mais um amigo que no fim-de-semana passaria a jogar pelos casados... Já só restavam dois solteiros no grupo, ele e amigo baixinho, aquele que ainda vivia com os pais...

Conhecia-os a todos, há mais de dez anos que se encontravam ali... uns já eram pais, mas continuavam um grupo unido. Mas ao chegar aquela hora, a hora em que, em tempos ídos, apanhavam uma borracheira e deabulavam para uma pensão qualquer com a primeira miúda que engatavam no bar, agoram despediam-se ainda sobrios e seguiam para casa.

Francisco tinha ficado sozinho no bar desta vez. Até o Miguel se arranjou com uma estrangeira e desapareceu com ela para o hotel onde estava hospedada.

Francisco tinha tido a oportunidade de ficar com a amiga dela, uma belga alta e vistosa, um pouco magra demais talvez. Não lhe importava, e isso até lhe passou pela cabeça quando ela se sentou na sua frente com um decote povocante a bebericar um Malibu. Mas hoje Francisco não lhe apetecia. Podia ler-lhe nos olhos, ao ver os amigos casados partirem. Ele que sempre se vanglorizou da sua vida descomprometida, sem dar satisfações a ninguém. Ali estava ele, ao balcão do meu bar.

- Acho que é para aquecer - respondeu-me bebendo um gole do seu whisky.

Já eram 5h da manhã e o bar estava praticamente vazio. Havia apenas um casal enrolado num sofá a um canto. Servi-me também, coloquei 2 pedras de gelo e sentei-me ao seu lado ao balcão.

- Afinal, tens medo de quê? - perguntei recebendo em troca um silêncio de morte.

Bebeu mais um gole e retorquio.

- De...nada.

- Nada. Talvez seja esse o problema - disse-lhe - Quem não procura, é apenas isso que tem: nada. Um nada que se transforma numa casa vazia, num frigorífico com comida fora de prazo, numa cama por fazer enorme, gelada. É isso que queres a vida toda? É para isso que afastas qualquer possibilidade de relação? É isso que fazes a ti próprio, não é?

 Francisco ficou pensativo, olhando-me vagarosamente justificou:

- E para quê mais? se depois todos separam-se...

- Sim, é verdade...muitos. Sabes, nada é eterno... alguns acabam por separar-se - sorri-lhe, continuando - eu diria mesmo que só acontece àqueles que um dia tiveram a coragem de se juntar, de partilhar, de aceitar o diferente, de prescindir de si mesmo a toda a hora...

Sim, assusta... alguns não conseguem deixar de lado o conforto egoísta que a solidão nos trás. Mas a maioria, como os teus amigos, tenta. Às vezes cai, depois levanta-se. Mas vive. Vive cada momento a dois como se fosse o primeiro, não há espaço vazios, e claro que há dúvidas, hesitações, medos... mas mesmo assim arriscam cegamente, apaixonam-se e entregam-se.... porque é nesse arriscar que descobrem o verdadeiro prazer de estar vivo.

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias

 

publicado às 00:31


2 comentários

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De Luís Fernandes a 22.03.2010 às 15:00

Muito bonita a sua história. Com franqueza, gostei muito. Muito bem escrita.
Parabéns.
Abraço.
Luís Fernandes
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De Closet a 23.03.2010 às 23:25

Obrigada Luís...na verdade estava cheia de sono e acho que não consegui transmitir bem o que pretendia.

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