Destapar a Vida
Pareceu-me uma brecha de luz invadir por entre as persianas. Tacteei por cima da mesa de cabeceira o despertador. Cego, mudo, sem vida. Não tocou.Ou será que fui eu que o desliguei? Não sei...
Enterrei-me na cama mais um pouco. Devia ser cedo. E eu não tinha pressa. Nunca tinha. Talvez até fosse Sábado e nem precisava de me levantar. Não sabia. Era de certeza mais um dia. Igual a todos os outros. Banal.
Revirei-me na cama mas nem o sono veio ter comigo. Sonhar era algo que não fazia. Apenas dormia, num apagão de luz, como uma espécie de maldição.
Sem abrir as persianas arrastei o meu corpo pesado e dormente para o frio do quarto. O telefone estava sem bateria. Peguei no comando da televisão. Nada. O LCD cinzento olhava-me de frente. Morto também. O candeeiro não funcionava. A energia tinha abandonado aquele quarto, sombrio, naquela manhã de Inverno. Abri as persianas e uma luz forte encandeou-me, como se trespassasse o meu corpo lento com uma flecha pontiaguda. As paredes ganharam novamente a cor baunilha que pintava semanalmente. A cor que teimava em esmorecer.
Lá fora era dia. Um sol brilhante que aquecia as ruas desertas. Ninguém para absorver na pele os raios de sol. Carros parados. Vazios. Lojas de portas fechadas. Pensei se seria Domingo. Ou um feriado qualquer. Não sabia. Não importava. Era mais uma dia.
Voltei-me para o interior do meu quarto, as roupas espalhadas, os livros com páginas marcadas, empilhados na mesa de cabeceira, um CD na aparelhagem que hoje não falava comigo.
Percorri aquele quarto de paredes vazias e apenas na cama, por fazer, jazia uma sombra antiga, aquela que nem o raio de sol mais intenso conseguia apagar. Um corpo perfeitamente delineado, deitado de costas em forma de concha, onde o meu se encaixava todas as noites para adormecer. Ficava ali, inerte, gelado, sem se mexer todos os dias. E ainda assim, sem o calor da vida, noite após noite eu procurava-o incessantemente, num labirinto infinito.
O silêncio ensurdecedor daquela manhã transportou-me para tudo aquilo que me estrangulava há tanto tempo. Um tempo que já não sei contar. Um ano. Talvez dois. Ou será cinco? Perdi a noção e o tempo passou a ser aquele lugar, onde a tua sombra se perpetuava na minha cama e eu abraçava-a num gesto diário, repetido.Não sei sequer se estou vivo. Se apenas espero que a tua mão volte a acariciar o meu cabelo ao acordar e o teu beijo me devolva o batimento cadíaco para enfrentar o dia.
Lá fora o sol brilha, mas não vejo ou oiço um grito de vida. Ao fundo, a um canto tapada com um pano, está a viola em que tocavas as músicas que compunhas. Não a levaste contigo. Deixaste-ma como um presente envenenado de um futuro que não mais voltaria. Tu partiste. E eu tapei-a. Não para a esconder, mas porque o oculto assumiu uma importância maior. Era lá que vivias.
Naquele dia não faltou apenas a energia, agudizou-se em mim uma ausência de sentido... berrei, com toda a força. Uma vez. Outra. E mais outra. Respirei e destapei a viola há muito adormecida. Levei-a para a cama connosco, afagando o seu corpo ondulado. Reparei em como tinha formas perfeitas, como as tuas. Depois deslizei os dedos pelas cordas já desafinadas. Como se acariciasse de novo cada fio do teu cabelo dourado. Experimentei-as uma a uma. Em cada som produzido, algo em mim se desvanecia numa espécie de despedida, como a memória das malas com as tuas roupas em cima desta cama. Continuei a tocar aleatoriamente as cordas, libertando-me da tua imagem a secares o cabelo de cabeça para baixo, de como barravas o pão com manteiga e colocavas doce por cima.
Toquei a tua música preferida, aquela que eu campus um dia para ti, na mesma noite em que decidiste ficar comigo. Chamei-lhe "Acordar" porque foi isso que senti. E tu escreveste a letra, enquanto eu tocava. Vejo que ao fim deste tempo todo eu ainda me lembro de cada palavra, de cada nota...
Não sei durante quanto tempo fiquei hoje a tocar. Mas vi que o sol já se despedia no horizonte, anunciando o final de mais um dia...
Pousei a viola e voltei-me para o lado, era aquele vício de te ver. A tua sombra que jazia nos meus lençóis. Mas um buzinar de automóvel lá fora fez-me saltar. Voltei-me novamente e, de repente, não te encontrei mais, a tua sombra desaparecera da nossa cama. Talvez estivesses agora tão destapada como a viola que, em paz, descansava encostada à parede.
Fui até à janela e vii com espanto carros a circular, pessoas a andar apressadas e, ao fundo, num banco de jardim, um casal de pernas entrelaçadas beijava-se demoradamente. Depois sussurravam qualquer coisa, numa linguagem mágica, sorrindo. Havia o brilho do sol no seu olhar. Havia vida naquele mundo.
Tapei a minha cama desfeita, vazia e saí. Era para ali que eu ía caminhar.