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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
A distância laranja
Vivemos numa rotunda enorme com muitas faixas de rodagem.Abrandamos, aceleramos, repetindo ciclicamente os mesmos erros, os mesmo embates.
No início detestava-te. Achava-te convencido e arrogante, não conseguia sequer perceber o que a minha amiga viu em ti. Eras feio de antipático e sisudo, com um ar superior, de quem sabe tudo e melhor que ninguém. Nem um sorriso. Entre nós havia uma proibição de passagem. Um sinal vermelho que obrigava a parar.
Mas um dia entrámos na mesma faixa sem reparar. Algo de estranho se passava com o meu carro e tive de sair para a berma e encostar. Não sei se por simpatia encostaste o teu também. Não tínhamos pressa e o tempo diluiu-se numa eternidade, diria como se fosse uma semana inteira a conversar... tu percebias de carros, e eu deixei-te comandar. Acho que entre nós abriu-se um sinal laranja de tolerância. Aprendi a conhecer-te e, sem dar conta, a apreciar-te.
Sempre que nos cruzávamos havia um gesto, um sorriso, uma conversa, um olhar. Entre nós abriu-se, de repente, um sinal verde que subitamente nos fez aproximar.
Primeiro arrancámos devagar, com os médios acesos, mas aos poucos fomos ganhando velocidade, de tal forma que, por vezes, sentia-me a derrapar. Fiz peões, ultrapassei os limites de velocidade permitida... nem sempre percebi se me estavas a acompanhar. Mas a adrenalina do perigo é viciante e foi impossível abrandar.
Numa noite de nevoeiro, atravessei-me na faixa errada e encontrei-te. Já não consegui travar. Havia em ti uma luz verde brilhante. Como um farol que conduz no alto mar. Entrei pela tua faixa apaixonante onde o piloto automático passou a comandar. Confesso, foi impossível ultrapassar. O nevoeiro intenso ofuscava-me, atraiu-me para a berma escorregadia e encostei-me ao teu carro de mansinho. Fiquei lá abrigada até o sol raiar.
Foi uma noite confusa, invadida por sinais intermitentes, gestos apaixonados embebidos em palavras indiferentes. Assumi um laranja, que não proibia a passagem, mas fazia-me abrandar. As palavras vazias, orgulhosas, criam distância. Que ironia, não te consegui alcançar... e naquela distância laranja foi mais seguro abrandar.
Chegou a madrugada e com ela uma chuva intensa e enraivecida, misturando-se com lágrimas de uma despedida. Segui o meu caminho pelo chão molhado, onde senti-me a derrapar. Não me lembro de mais nada. Dizem que tive um acidente, passei um vermelho sem parar. Embati no teu carro estacionado na berma. Perdi os sentidos, entrei num sono profundo de onde só muito tempo depois consegui acordar.
Os carros ficaram amolgados, os pára-choques destruídos, mas ainda conseguiam andar. Meti-me de novo na rotunda, procurando em todas as faixas, uma explicação, um gesto, o teu olhar. Mas deparei-me de 5 em 5 metros com sinais abertos vermelhos, que constantemente me obrigavam a parar.
Andei aos círculos por tanto tempo, naquele arranca e pára infernal... até que saí da rotunda, e apanhei uma recta onde não havia sinais para me condicionar. Senti-me livre, das cores que comandam a vida, do laranja dúbio da tua distância, entre partir e ficar.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias