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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Segunda-feira, 25 de Janeiro
Deixei os miúdos na escola à hora habitual e segui em direcção a Lisboa, cantando músicas em volta alta, esquecendo o trânsito à minha volta que não iria interferir com a minha boa disposição daquele dia. Como combinado, dei-lhe um toque para o telefone mal cheguei à sua porta. Ela acenou da janela um "vou descer". Era o dia de anos dela, da minha melhor amiga, e íamos tomar o pequeno-almoço juntas. Mas o que ela não sabia era que os meus planos eram diferentes, muito diferentes.
Ela entrou no carro e abraceia-a logo com "aquele nosso abraço apertado". Disse que tinha escolhido outro local «não tens pressa, certo?» perguntei sorrindo. «Não, eu não tenho pressa, mas tu não vais trabalhar?» perguntou admirada. Abanei a cabeça e soltei um «Logo se vê».
Conduzi em direcção a sul e fingia não reparar na expressão de espanto espelhada na sua cara. Continuava a falar sem parar para não lhe dar qualquer hipótese de me questionar. Admito que é algo que faço com bastante facilidade!
Passámos a ponte e na saída segui um desvio à direita, num caminho de terra batida com arbustos e silvos a ladearem-nos. «Mas onde vamos?» perguntou-me já impaciente. Parei o carro e os meus olhos sorriram para ela com evidente felicidade. Não lhe disse nada. Ela fixou o meu olhar demoradamente e, ainda confusa, acenou que sim. Prossegui.
Entrámos num parque com vários carros e estacionámos. Tudo aquilo nos era agradavelmente familiar. Reconhecemos o caminho até à nossa tenda "a famosa Iglo azul e amarela". Lá estava ela, um pouco torta, como habitual, com algumas espigas mal enterradas. Era a "nossa Iglo", sem dúvida. O fecho tinha um cadeado pequeno. Não que fosse grande coisa, mas era a única forma que tínhamos para proteger as nossas coisas. «A chave? Onde é que pusemos a chave?» perguntei-lhe ... Ela levantou um pouco a tenda junto à porta, lá estava ela! Tinha-me esquecido que a deixávamos sempre ali.
Naquele dia de Janeiro estava "o calor daquele Agosto". Despimos os casacos e encontrámos radiantes lá dentro os nossos fatos de banho, os calções e os tops para a praia. «Anda, não temos tempo a perder!» disse-lhe enquanto já me contorcia dentro da tenda enquanto me despia e vestia . Passei-lhe as roupas dela e ela seguiu os meus movimentos sem questionar.
Este é um hábito que temos, há quem lhe chame telepatia, vidência, ou outros nomes similares... Eu nunca pensei muito nisso, apenas sei que, com ela, nem sempre preciso falar. Um olhar ou um gesto é suficiente. Confiamos, reconhecemo-nos. Da mesma forma que uma criança aprende a andar, nós apoiamo-nos uma na outra e seguimos os passos certas que nos irão segurar.
Agarrámos as toalhas e saímos em direcção à praia que nos esperava à saída do parque. O mar estava brilhante, o sol quente, corremos descalças pela areia até junto do mar. Mergulhámos na água tépida da costa alentejana e depois esticámo-nos como lagartos ao sol. Conversámos sobre tudo, sobre nada, e rimos muito das nossas aventuras e desventuras. Até que surgiu um rapazinho de 16 anos, aproximou a convidar-nos para ir com ele ao bar. No meu estilo descontraído balbuciei qualquer coisa em alemão que o fez recuar de atrapalhação. Não controlámos o riso ao vê-lo aflito afastar-se com um "tchau". Fazíamos muitas destas. Inventávamos, inventávamo-nos, éramos muitas, éramos o que queríamos e quando queríamos. Aquele era o nosso mundo intemporal. Foi por aquela janela de tempo que a consegui levar naquele dia mágico. Porque eu e ela acreditámos nela e conseguimos lá entrar.
O sol foi baixando em direcção ao mar. Voltámos para o carro. Já com as roupas e casacos novamente vestidos reparei desolada ao espelho o meu cabelo comprido todo encaracolado... o dela estava esticadinho, como sempre. Torci a boca e suspirei. Ela olhava-me abanando a cabeça sorrindo e, de repente, nos seus olhos senti-me a pessoa mais bonita do mundo. Com 16 anos, ou com 36 anos. Não interessava. Na essência somos seres infinitos, genuínos.
Ela escreveu-me um dia citando António Ramos Rosa "(...) Navegamos nas veias verdes de um ócio apaixonado, para um país onde cada gesto desencadeia um nascimento onde em cada coisa brilha o lume da origem". E foi este poema que abriu aquele caminho de terra batida e que, com toda a certeza, nos fará encontrá-lo sempre que o procurarmos.
Quando a deixei à porta de casa recebi "aquele nosso abraço apertado", aquele instante onde as almas se encaixam numa melodia impossível de compor em notas musicais.
No seu banco ficou caído um papel dobrado, mas já não fui a tempo de a chamar.
Abri e li " Vejo a mestria da nossa amizade, num parágrafo simples da vida. S."
Texto escrito para a Fábrica de Histórias
Dedicado à minha Best Friend que faz anos nesta 2ª feira, 25 Janeiro!