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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Ser Primavera
Não era tarde, nem cedo, era a hora exacta. Aquela em que eu já a esperava.
Ela iria entrar pela porta da frente, de mansinho, e inundar a casa com o seu aroma floral, vestida com as habituais cores pastel, que esvoaçavam.
E assim entrou sem me espantar, de óculos escuros enormes, que lhe roubavam o rosto, iluminado pelo sol.
Acenei-lhe do fundo das escadas, como se não soubesse que viria:
“Vera! Que saudades!” disse ainda com a voz rouca de sono.
E ela correu pelas escadas, aquecendo subitamente o meu quarto e libertando aquele perfume inebriante a alfazema que me confortava. Sorria, a Vera sorria sempre. Com um ar talvez inquieto, ou ansioso. De quem sabe bem o que quer, mas ainda não sabe como.
A sua voz soltou-se rapidamente como o cântico de um pássaro selvagem, falava agora encantada, e gesticulava, como a brisa do vento ondulando um campo de trigo. Acompanhei-lhe os movimentos com os olhos e tentei seguir-lhe o rasto que deixava. Estava apaixonada, dizia-me. Podia ver no seu rosto o planar feliz de uma andorinha num céu azul celestial. Dizia que ele era envolvente, escaldante, podia afirmar que era mesmo o seu destino.
Sentada na minha cama, Vera confidenciava-me convicta este amor inesperado. Sempre fora algo tímida, mas por vezes algo nela explodia, como uma imprevisível chuva de Abril. E tudo nela podia desmoronar-se a qualquer momento, o céu tornar-se cinzento e o sol, encoberto, chorar.
Mas em breve tudo iria mudar, dizia, quando de repente uma buzina lá fora apitava.
De cabeça de fora da janela, Vera gritava “aqui em cima” e puxava-me para o parapeito da janela onde se debruçava.
Ajeitei os cabelos desalinhados e puxei as alças da camisa de dormir amarrotada.
Um raio de sol quente atingiu-me de frente, no peito, e por segundos encadeou-me os olhos de claridade. Ainda tonta, descobri um vulto moreno, alto e musculado que nos acenava. Os seus olhos azuis eram como faróis que guiavam qualquer barco à deriva num mar alto e o sorriso… O sorriso era perfeito, despido e rasgado.
“Quem é?” Suspirei ainda enfeitiçada.
“É o Verão! De quem eu falava”.
(Moral da história: Para ter um Verão, precisas ser Primavera!)
Texto escrito para a Fábrica de Histórias.
Já escrevi sobre o meu pai para a Fábrica, sobre o tema herói, aqui.
Apresentei-o a ele, a nós, com nomes fictícios.
Se ficou muito por dizer? Tanto!
Decidi escrever hoje sobre coisas mais divertidas, porque vivemos os dois sozinhos durante 5 anos e não me lembro de estar zangada com ele mais do que 20 minutos! Não é propriamente uma história, são histórias da nossa vida!
As coisas que o meu pai consegue
Tirar-me do sério (a nossa conversa há 1 hora atrás)
- "Mas filha, vamos almoçar amanhã porquê, se vamos almoçar na 4ª feira com a tua irmã?"
- "Paizinho, porque é dia do pai e eu costumo oferecer-te o almoço, lembras-te?"
- "Mas já vamos na 4ª feira, para que vamos almoçar duas vezes seguidas?"
- "Pai, é DIA DO PAI! Estás a dizer que não queres vir almoçar comigo?"
Ele vem, pronto, ele vem, não muito convencido do "para quê" mas vem...
Dar-me a volta
Vinha eu eufórica com um panfleto de um curso de teatro juvenil os Lobitos, eis que ele convenceu-me a substituir esse curso por... alemão.. isto com 14 anos ... (é que tem tudo a ver, e sentia-me uma verdadeira aberração sempre que pronunciava algo em alemão junto dos meus amigos).
Ver sempre o lado positivo
E nesta podia dizer muita coisa... mas não esqueço quando ele esteve internado há 2 anos com um grave problema circulatório, no qual estava em risco a amputação de uma perna ou pé ou dedo.
- "Filha, olha, é só um dedo!"
- "Mas tem mesmo de ser?"
- "Oh filha, deixa lá, que falta me faz?"
Substituir um GPS
E aqui tenho de tirar-lhe o chapéu. Para qualquer lugar novo onde eu vá sozinha ele faz questão de traçar-me o caminho e descreve-lo pormonorizadamente, com direito a "faixa de 2 sentidos" e "rua de sentido proibido" (ok, isso é importante para mim) e a locais onde posso estacionar, descrevendo as cores e formas do sinais de trânsito desse local. Posso dizer que esta tarefa muitas vezes requer-lhe uma ída prévia ao local (sim, porque para ele o pc é um objecto desnecessário e o googlemaps é uma modernice fajuta).
Dormir na sala 1 semana
e não, o quarto não estava com infiltrações, pintado de fresco ou com algo corrosivo no interior... foi mesmo só porque uma pequenininha osga pernoitou no quarto dele sem pedir licença, osga essa que nos obrigou a matar e mostrar-lhe o cadáver... ainda assim fez uma semana de luto ao quarto, não fosse as amigas dela virem ao funeral...
Dizer as coisas mais insensiveis com a maior naturalidade
e pior sem perceber que as diz...
- "oh filha, pois habitua-te às dores, olha que já não vais para nova"
- "pfff"
- "Mas estás a fazer esse curso de escrita há tanto tempo para quê?"
- "Porque eu gosto, é um escape"
- "Mas não era melhor vires para casa sossegadinha cuidar dos miúdos?"
- "Pai, eu disse escape, e eu gosto de escrever"
- "Mas não podias escrever em casa?"
Andar em casa de robe em pleno Agosto
e de vassoura na mão, porque a minha gata ficou doente e atacava (e estava mesmo doente, vá)... mas lembrar-se de prender a gata na varanda, hã?? nãaaaa... Lá tive eu de vir recambiada de um campo de férias para salva-lo!
Ser incovenientemente sincero
- "Pai, lembras-te da minha amiga Susana?"
(depois de várias dicas e sorrisos da Susana)
- "ahhh já sei, olá Susana... mas naquela altura tu eras muito gorda, não eras?"
- "Pai, ela estava grávida..."
- "Ahhh, mas era gordinha"
No dia do meu segundo parto, cesariana marcada, no meu quarto do hospital:
- "Filha, já estás aqui, agora vou comer qualquer coisa ao bar que estou cheio de fome"
- "Pai, eu também não como nada há 10 horas e não quero ficar aqui sozinha no quarto à espera"
- "Eu vou só comer, depois se te vierem buscar tu vais lá com eles, não te preocupes que eu fico aqui à tua espera"
Ser mais despistado que eu
e aqui é dificil...
- "Deve estar para ali" (o carro)
- "Pai, ali onde? Já passámos por ali."
- "Ali, já passámos por ali?... ah espera, eu vim de autocarro"
Ter um acidente num autocarro
e lá fui eu busca-lo à unidade de ortopedia de Santa Maria porque o autocarro onde ele ia bateu, uma senhora caiu-lhe para cima e fez-lhe uma luxação qualquer no pescoço (a senhora, note-se), para além disso ainda esteve em observação devido a possíveis cortes da chuva de vidros que levou causada pela queda da dita senhora que partiu um painel junto à porta (a mulher devia ser um bizonte...). Quando lá cheguei, com direit a crachá da ala de ortopedia só me disse:
- "já viste isto? vai uma pessoa sossegada num autocarro..."
E poderia continuar a contar histórias do meu pai. De como sabe o nome de todos reis, e presidentes, e ministros, os nomes e capitais de todos os países e principais monumentos... "Filha, não me digas que não sabes?" E eu? Sou uma nódoa... De como passávamos as tardes de Sábado a beber umas cervejas e comer tremoços, ele com o Expresso relatando-me as notícias que eu a fingir ouvir enquanto folheava as revistas sociais! Dos nossos almoços ao Domingo de cozido à portuguesa no restaurante de sempre, dos passeios que dávamos sem destino ao fim-de-semana onde a conversa nunca se esgotava, normalmente ele a tentar cultivar-me! Mais do que um pai, é um companheiro único, incomparável... E eu? Às vezes sou resmungona, mas tenho a sorte dele nem ligar e telefonar-me todos os diazinhos e estar sempre pronto para o que eu precisar.
Testo escrito para a Fábrica de Histórias.
Arco-íris de alguém
Clara tem pele clara, cabelo comprido castanho e uns olhos cor de mel. Do seu lugar, por detrás de um monitor, estremece sempre que as portas do elevador abrem-se às 9h30.
David é alto de cabelo loiro desalinhado e olhos grandes azuis. Chega sempre às 9h30 despreocupado e estreme quando vê Clara.
Clara é casada, tem uma filha e uma vida vulgar, padronizada, onde ainda não encontrou um lugar para David.
David tem uma relação de 7 anos, vai casar e tem uma carreira profissional de sucesso. Ainda não conseguiu encaixar Clara na sua vida.
Ambos trabalham no 5º andar de um edifício com mais de 400 pessoas. Na agitação matinal cruzam olhares de pânico apetecidos.
Clara encontrou em David um novo motivo para sorrir, sentir-se atraente, viva. David encontrou em Clara a força para vencer o mundo, a auto confiança e a segurança adormecida.
Encontraram-se os dois, sem perceber, orfãos de tempo e abrigo. Sôfregos de paixão e encantamento, mortos pelo cansaço da rotina, deslumbraram-se num labirinto sem saída. Vidas cruzadas, ocupadas, perdidas, pelo destino embargadas na alfândega da vida.
Clara e David já foram um só, num fim de tarde clandestino. Os olhos, incontroláveis, fixaram-se. Os lábios atraíram-se magneticamente e os corpos, deambulando à deriva, sedentos de atenção e desejo, naufragaram um no outro. Amaram-se sofregamente, num segredo contido. A felicidade imaginada, por momentos sentida, trazia um travo amargo consigo.
Separaram-se. Como era o destino. Continuaram, perdidos, as suas vidas.
Às 9h30 ela ainda estremece quando o elevador se abre. Ele ainda estremece quando os seus olhos se cruzam com os dela no caminho.
Estremecem os dois, incontrolavelmente. E aquele breve momento é como um arco-íris. Num dia de chuva, um crepúsculo de cores invade o céu cinzento e triste, a sensação que é efémero, vai desaparecer a qualquer momento, mas é tão bom enquanto dura.
Texto (re)escrito para a Fábrica de Histórias
Cumplicidade
- O que achas que me falta?
Sara estava sentada com os pés enterrados na areia enquanto olhava fixamente a linha do horizonte. Amparando as suas costas, Afonso envolvia-lhe o corpo com os braços, como se a segurasse de um abismo. Com os lábios, percorria-lhe suavemente o pescoço e aquecia-a com a sua respiração que a acalmava.
Sara repetiu a pergunta, voltando a cabeça e olhando-o nos olhos:
- A mim, o que achas que me falta?
- Cumplicidade - Sussurrou numa voz grave, junto ao seu ouvido.
- Cum-pli-ci-da-de.
Soletrava como se fosse uma palavra desconhecida.
Recostou-se de novo, encaixando-se no seu tronco como numa concha. E nesse calor, por momentos, quase se esquecia que existia.
- Talvez seja isso, Cumplicidade. Como num assalto por exemplo, cumplicidade é... Confiar no outro? Planear em conjunto, ser especialista em algo que falte ao outro? Não estou a conseguir chegar a lado nenhum, acho que não é nada disto...
Afonso enrolou-a nos seus braços, como uma onda do mar. Beijou-a sofregamente, não lhe dando qualquer hipótese de se afastar. Era um beijo tão intenso, como inesperado, parecia devora-la, tirar-lhe completamente o fôlego.
- És sempre assim violento, como a beijar? – Perguntou-lhe entre o seduzida e o assustada - Tenho a sensação que eu sou um rio calmo e tu um mar agitado, com ondas altas e correntes fortes que me impedem de nadar em qualquer direcção.
Afonso sorria atrapalhado:
- Sabes que todos os rios desaguam no mar?
Sara abrigou-se novamente no seu corpo quente, enrolando-se nos braços que a envolviam. Fixava o olhar no horizonte onde as estrelas já povoavam o céu com pontinhos brilhantes e o mar espelhava o brilho da lua.
- Acho que Cumplicidade é…partilhar segredos, desejos, frustrações... É esse "partilhar" espontâneo não é? Que se alimenta dele próprio, incapaz de se esgotar. Num filme ouvi que a maior magia no mundo é o pequeno espaço criado entre duas pessoas, a tentativa de se compreenderem e de partilharem algo.
- Acho que sabes o que é cumplicidade. Pode também ser energia, ou uma química, aquela parecida à do prazer, a vida é simples Sara. E seja um beijo doce do rio, ou salgado do mar, podes agora beijar-me?
- CORTA! Acho que ficou bem, temos só de repetir a cena do beijo, quase lhe arrancavas um lábio Pedro!
Escrito para a Fábrica de Histórias