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Fábrica de Histórias

por Closet, em 30.01.12

 

Os Sapatos feiticeiros

Arya percorria as ruas íngremes de calçada de pedra escura. Mais uma vez, deambulava sem rumo, pensativa, por caminhos da vila que desconhecia. Deu por si perdida, como num labirinto, onde já não encontrava o caminho de regresso.
Estava um fim de tarde frio e o seu corpo, cansado e faminto, procurava desesperado um abrigo. Ao fundo da rua, uma montra emanava uma luz ténue, ainda assim capaz de iluminar aquele beco escuro. Parecia uma loja de velharias,  daquelas onde se vende por tostões objectos de que nos queremos desfazer.
Bateu na porta que se abriu de repente. O calor do interior aconchegou-a de imediato, e numa mesa ao fundo um senhor de cabelos e barba branca, bebia um chá que fumegava. Com a sua mão trémula fez-lhe sinal para se sentar. Sem lhe dizer uma palavra, estendeu-lhe uns biscoitos e uma chávena de chá.
Arya agradeceu e saciou a fome, o chá quente aqueceu-lhe o corpo e, rompendo o silêncio, confessou ao ancião que estava perdida e não sabia que caminho tomar para voltar a casa.
O velho sorriu. Era um sorriso calmo de quem já viveu tudo e nada o preocupava. 
Então falou-lhe numa voz rouca, sumida, sobre a sua loja. Disse que não vendia nada, tudo o que ali tinha era especial para quem ousasse lá entrar.
Arya perguntou-lhe se teria algo que a ajudasse a regressar a casa.
O velho estendeu-lhe a mão sobre um balcão empoeirado. Havia um relógio antigo de corda, uma caixa de música com uma bailarina em cima, uma boneca careca que chorava se lhe tirassem a chucha e um par de sapatos com aspecto antigo mas delicados.
Arya olhou os objectos espantada, não compreendendo como algum deles a poderia ajudar.
O velho disse-lhe que o relógio era o guardião do tempo, da ordem e da estabilidade; 
A caixa de música trazia com ela a beleza eterna, sempre constante e repetitiva; 
A boneca que chorava era a fonte de juventude, da imortalidade e ingenuidade.;
E os sapatos eram feiticeiros de personalidade, regentes do seu próprio mundo.
O velho disse-lhe para pensar bem, pois todos eles poderiam ser dela, mas apenas um seria o que verdadeiramente necessitava.
Arya estava confusa, não compreendia as palavras do velho e, de todos os objectos, o que mais a fascinava era o par de sapatos.
Consciente que nada do que o estranho velho lhe dissesse a iria ajudar, desistiu de o compreender e tentar a sua sorte a voltar a casa.
Perante a sua insistência, escolheu o objecto que mais gostara, os sapatos feiticeiros, como o velho lhes chamava.
O velho pediu-lhe para calça-los, ali mesmo na loja, garantindo que lhe serviriam de certeza, que eles tinham sido feitos para ela. Já assustada Arya decidiu não o contrariar, descalçou as suas botas castanhas velhas e enfiou os pés nos sapatos. Incrédula, verificou que lhe serviam como uma luva, na perfeição. O velho disse-lhe então para seguir sem medo, que encontraria o caminho.
Ela caminhou até à porta com as suas botas na mão, abriu e sentiu o vento frio do exterior.
Quando a porta se fechou atrás de si, Arya viu em frente a porta de sua casa. Era mesmo a sua casa, sem dúvida, a porta verde com um puxador dourado. Estava entreaberta e Arya entrou feliz, embora atordoada com o que se passara. Entrou na cozinha de rompante onde a mãe se encontrava ao fogão a cozinhar o jantar. Arya disse-lhe ainda esbaforida "mãe, não imaginas o que me aconteceu esta tarde" e contou-lhe toda a história, sem a mãe uma única vez a questionar. Efectivamente a mãe não olhara para ela uma única vez, o que a entristeceu e fez recolher ao seu quarto. Antes de entrar, entrou no quarto da irmã que estava a ler um livro e perguntou-lhe se podia por uma música a tocar. A irmã não lhe respondia. Nem a olhava. Arya chegou-se bem perto dela e tocou-lhe no braço. Ela não reagiu.
Foi então que Arya percebeu que algo de estranho se passava. Aqueles sapatos eram o seu desejo mais íntimo de desaparecer por momentos da realidade. A fuga que fazia de tudo e todos, o isolamento que diariamente procurava. 
Foi para o seu quarto e descalçou os sapatos, colocando-os no seu armário debaixo de uma almofada. Voltou ao quarto da irmã e fez a mesma pergunta, ela balbuciou um sim contrariado. Arya respirou fundo e voltou para o quarto, olhou deslumbrada os sapatos. O seu segredo estaria para sempre bem guardado. 


Texto escrito para a Fábrica de Histórias

publicado às 00:52


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