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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Os Sapatos feiticeiros
Texto escrito para a Fábrica de Histórias.
Passar do Tempo
Texto escrito para a Fábrica de Histórias
Debaixo de Fobos e Deimos
Aqui a terra é vermelha, porque pulsa vida.
Do chão vem o calor que nos aquece. Não temos frio, andamos descalços e não usamos roupas. Quando temos fome, colhemos os alimentos das estufas que construímos e onde cultivámos. Se temos sede retiramos água do fosso que escavámos. Quando estamos cansados, deitamo-nos na primeira cratera que acolhedoramente nos recebe. Não temos um lugar fixo para dormir, para comer, não precisamos de possuir nada. Somos nómadas, deslocamo-nos em grupo, com o tempo, perseguindo sempre a primavera e evitando as tempestades.
Não somos muitos, mas os suficientes para compreender que a vida é limitada, que um dia o nosso coração deixa de bater e o sangue deixa de pulsar. Nas minhas primaveras, já vi alguns morrer na minha frente. Mas nunca chorei. Acreditamos que eles renascem nos outros que vimos nascer com felicidade.
Somos verdadeiramente uns dos outros, vivemos uns para os outros, sem nenhum ser apenas de alguém. Não conhecemos outra forma de viver. Nem compreendemos aquelas de que nos falam os anciões. De violência, ambição, ganância, medo, ódio, mentiras, falsas intenções.
Somos naturalmente simples.
Se estamos felizes dançamos descontrolados ao vento até cair de exaustão. Se nos apetecer falar, falamos. Numa linguagem que sai da boca, dos olhos, do coração e das mãos. Outros são os momentos que reservamos ao silêncio puro de quem não precisa dizer nada, noites em que olhamos extasiados Fobos e Deimos, os deuses inseparáveis que nos acompanham e nos guardam. Fazemos amor, debaixo dos seus olhos, com os corpos colados junto à terra, porque é nela que encontramos o ardor e a magia da paixão. Depois descansamos em abraços prolongados, numa entrega serena, de quem não esconde nada de ninguém.
Dizem, os anciãos, que este era um planeta virgem e foi colonizado. Que descendemos de seres de outro planeta, que aqui, não existia ninguém. Dizem ainda, que quem aterrou cá sentiu uma espécie de chamamento e nunca mais quis voltar. Mesmo com dificuldades de adaptação, largaram a ciência, a cultura, a tecnologia. Deixaram tudo o que os prendia na outra vida. Aqui não tinham qualquer utilidade, nem justificação. Ainda encontramos por cá algumas naves, agora enferrujadas, empoeiradas. Olhamos para elas, atónitos, nem nos atrevemos a entrar. São de ferro, cinzentas, geladas. Como puderam lá habitar? Dizem que esses nossos antepassados encontraram aqui a verdadeira liberdade. Do tempo que contavam pelo sol, do pedaço de terra pelo qual lutavam escravizados. Perceberam aqui, neste planeta deserto e desabitado, que a liberdade é não ter nada, é tão simples como enterrar os pés na terra e caminhar.
Ultimamente tenho acordado com o barulho de naves que sobrevoam o nosso céu, não sei ao certo de que lado vêm, não imagino se vão aterrar. Tenho acordado sempre em sobressalto, porque dizem, os mais velhos e sábios, que o meu planeta vai acabar.
História escrita para a Fábrica de Histórias
Era ali que o seu dia ganhava vida.
No exacto momento em que ela chegava, com os seus vestidinhos curtos, o cabelo apanhado de lado com dois ganchos e um rosto que iluminava tudo à sua volta. Sentava-se na outra ponta do banco de jardim e lia um livro com os phones nos ouvidos. Não falava, não o ouvia, apenas sorria.
Ele voltava todos os dias à mesma hora, esperava ansioso a sua companhia, e a cada dia sentava-se um pouco mais perto. Gesticulava qualquer coisa, muitas vezes sem sentido, para chamar a atenção dela. Ela sorria sempre, e ele percebia que aquele sorriso o estremecia, que o mundo ficava diferente, ela trazia-lhe uma nova melodia.
Na impossibilidade de arrancar uma palavra que fosse de resposta, ou de sequer ser ouvido, ele arranjou uma forma de lhe transmitir tudo o que sentia. Palavras escritas num post it, colados em cima uns dos outros, ele perguntava e ela respondia.
“gostava de te ver outra vez”
“se quiseres eu volto sempre à mesma hora”
Eram palavras escritas, que brotavam entre olhares cúmplices e risos, tão simples como verdadeiras, transmitiam o que mais intenso sentiam. A atracção que os seus sorrisos provocavam, a magia que os envolvia.
Um dia ela mostrou-lhe a música que ouvia sempre. Um som diferente do que ele imaginava, era o silêncio profundo onde ela vivia, que a rodeava. Ele ficou confuso, mas o sorriso dela, aquele que o fascinava, permanecia ali diante dos seus olhos. O calor do seu corpo ainda o estremecia. Na verdade, nada do que sentia tinha mudado. Eles comunicavam por uma linguagem que não precisava de ser falada ou ouvida.
“continuas a ser bonita”
Escreveu de imediato num post-it que colou, firme, por cima de tudo o que já antes tinha escrito.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias
[The Jubilee Project makes films for good causes. This film was produced to raise awareness and support for the American Society for Deaf Children. www.jubileeproject.org]