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Fábrica de Histórias

por Closet, em 31.12.11

Viver o que somos

 

Ricardo e Sara conheceram-se ainda adolescentes, numa noite embriagada. Ao primeiro encontro os lábios cruzaram-se por instinto, ébrios e impacientes. Jovens, entregaram-se um ao outro deslumbrados, sedentos.

Quis o destino que as suas bocas, ávidas de perigo, se aventurassem por mares distantes e, no alvoroço da juventude, naufragassem. Perdessem o rumo uma da outra. «Para sempre», pensaram. Como uma morte ancorada numa história incompleta, como um livro com as últimas páginas em branco, sem o capítulo final.

 

Puro engano. Estava escrito a tinta mágica, invisível aos olhos menos atentos, que dez anos depois, numa noite fria de Inverno, Ricardo encontrasse o caminho de regresso, numa viagem sinuosa, insegura.

Era Janeiro. Sara procurou um álbum antigo de Cat Stevens. Colocou “Wild World” a tocar baixinho como um calmante, acompanhado de chá de tília. Preparava-se para ler espreguiçada no seu velho sofá castanho, junto à lareira, quando a campainha estridente irrompeu do escuro do corredor. Levantou-se, a arrastar o corpo e a resmungar sozinha, abrindo a porta sem perguntar julgando ser a sua amiga.

Do outro lado, um vulto alto abalroou inesperadamente a porta, como se lhe fosse saquear a alma. Por instinto, Sara tentou fechá-la de imediato, assustada. Debateu-se contra o pé dele que a impedia de fechar o trinco, empurrando-a com o seu corpo.

- Olá! – Soprou por entre a nesga da porta.

Aquela voz arrepiou-lhe o corpo adormecido. Sara abriu renitente. Remexia os cabelos mal apanhados num rabo-de-cavalo de onde descaíam alguns fios pelo rosto, enquanto mordia os lábios trémulos, abanando a cabeça confusa. Os seus olhos verdes, outrora transparentes, estavam agora embaciados em lágrimas que ameaçavam emergir a qualquer instante.

- Olá? Olá? – Pestanejava – É só o que tens para me dizer?

Ricardo olhava-a de cima a baixo maravilhado, entre a ternura de um amor antigo, e a inquietação da paixão a fervilhar-lhe novamente no corpo. Uma tempestade violenta de sentimentos desconexos que o atordoavam de forma inesperada.

- Olá - Gaguejou - Sim, acho que as conversas começam assim… Podemos recomeçar?

As bocas entregaram-se como no primeiro beijo, descontroladas, sequiosas. Como se a terra parasse de girar naquele momento, para ali se entrelaçarem os dois corpos, enquanto a vida pulsava desassossegada ao acaso, noutro lugar. Sofregamente, fizeram amor com o tempo, aquele que os tinha há muito abandonado.

Sara encontrou novamente a sua voz, ainda embargada, como se acordasse de repente de um sonho profundo, em tumulto.

- A vida corre depressa Ricardo. Não se pode voltar atrás, mesmo que quiséssemos. Somos outros, diferentes. Vê! Cada uma construiu a sua vida…

- Podemos agarrá-la, começar de novo no ponto onde a deixámos.

 

Podia dizer-se que a vida deles tinha parado aqui, neste preciso momento. Ou melhor, que tinha recomeçado. Que as suas almas gémeas, torturadas pela distância, tinham-se reencontrado e tomado as rédeas do destino. Renascido juntas.

 

Mas há uma linha ténue, quase invisível, entre voltar atrás e começar de novo. E é nessa linha que pode estar o ponto crítico da vida.

Começar de novo não significa sempre voltar atrás. E, por vezes, voltar atrás não significa que se comece de novo, há uma probabilidade imensa de repetir as mesmas tentações.

Para recomeçar é preciso renascer.

E renascer não implica apagar toda uma vida para trás, mas conseguir pôr-lhe um ponto final. Decisivo. Para que seja possível construir, de raiz, com uma base sólida, toda uma nova vida. Que pode até nem ser melhor, mais feliz ou mais rica. Mas será a que agora lateja por dentro, irrompe a pele, transpira pelos poros.

Renasce-se para viver o que somos, de forma verdadeira.

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias 

 

Votos de um BOM ANO, INSPIRADO, COM PROSA E POESIA!

2012 ABRAÇOS, mesmo mesmo apertadinhos para os meus colegas DA FÁBRICA E DA ESCRITA ;)

 

 

 

 

publicado às 00:18

Fábrica de Histórias

por Closet, em 26.12.11

 

Imagem tirada daqui

 

Sonhos mágicos

 

Era uma vez uma rapariga que fazia sonhos numa banca de Natal.

Todos aqueles que provavam os seus sonhos rendiam-se ao seu talento, repetindo sofregamente mais um e outro, nunca se sentindo saciados. Uns diziam que eram sonhos simples de ovo, outros de abóbora e outros de cenoura. Mas a rapariga, de nome Doriana, encolhia os ombros e não lhes dava qualquer nome, apenas Sonhos.

Eram os seus sonhos, dourados e quentes como o sol de verão, fofos como uma almofada suave de plumas. Doces, açucarados, desfaziam-se rapidamente na boca, viciando aqueles que os que ousavam provar, eternos dependentes do sonho.

Todos os anos, por altura do Natal, vinham verdadeiras romarias provar os sonhos daquela pobre rapariga, acreditando que tinham poderes mágicos para quem os ingeria. As pessoas afirmavam sentirem-se mais felizes, mais amadas, mais compreendidas.

De tal forma acreditavam ser poderosos que pediam a Doriana para fazer sonhos o resto do ano, para abrir um negócio e expandi-lo além fronteiras. Mas Doriana não conseguia fazer dinheiro com os seus sonhos, eles tinham ingredientes especiais, sem qualquer valor material, mas únicos, não se compravam em nenhuma loja ou encontravam em nenhum lugar. Eram quilos de amor, dúzias de carinho e litros de emoções que jorravam abundantemente enquanto os amassava numa entrega total. Colocava neles tudo o que mais intenso e profundo sentia. Os seus sonhos e desejos mais recônditos transpiravam-lhe pela pele, pingavam em lágrimas de fantasia. Doriana nunca sonhava de noite quando dormia, esforçava-se por sonhar mas não conseguia. Percebeu que era enquanto amassava os sonhos, em pleno dia, que os sonhos transbordavam do seu coração, velozes, audazes, deliciosamente impossíveis.

Sonhos apaixonados de abóbora, sonhos simples de uma cabana à beira mar, sonhos a dançar ao luar de cenoura. Eram sonhos tão reais quanto as pessoas que os provavam e saboreavam deliciados o doce viciante da fantasia.

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias 

publicado às 01:22

Fábrica de Histórias

por Closet, em 18.12.11

 

Um dia ... sigo o rumo dos meus sonhos 

 

Clara arrumou a secretária, como sempre o fazia no final do dia. Os dossiers perfeitamente alinhados no canto e as pastas num pilha organizadas por assunto. Depois dirigiu-se para o gabinete de Francisco e arrumou os papéis espalhados pela secretária, colocou as canetas perdidas no chão e no meio de papeis no recipiente de aço que tinha o seu nome gravado. Guardou a correspondência e deitou no caixote do lixo os envelopes abertos amarotados. Reparou que a moldura da mulher com os três filhos estava tombada e voltou-a para cima. Olhou em volta, juntou as cadeiras à mesa redonda de reuniões e arrumou na gaveta um bloco de notas que lá tinha sido deixado. Correu as persianas e sorriu satisfeita, fechando a porta atrás de si.

Na manhã seguinte Francisco entrou no Gabinete bem cedo, como sempre o fazia. Trazia do café o pequeno-almoço para comer ali mesmo enquanto Clara não chegava para lhe trazer o café. Aproveitava para ler os emails em atraso e ler as notícias nos principais jornais online. Abriu o PC ao mesmo tempo que desembrulhava o folhado que comprara. Tinha 15 emails por ler, não era mau. Sorriu e pensou deixa-los para ler depois enquanto bebesse o café, abrindo de imediato a internet para ler as notícias principais. A crise, a bolsa, os assuntos habituais. Clara não chegava e Francisco olhava impaciente para o relógio. Já passava das 9h00. Decidiu abrir os emails. Eram a maioria emails internos, um de um fornecedor e um de Clara, às 19h30, sem assunto. Pensou que deveria ser um lembrete, ou a justificar porque estaria atrasada, embora não percebesse porque não lhe tinha colocado uma nota na agenda. Abriu e começou a ler:

 

«Olá Francisco

Deixa-me tratar-te por tu a partir de agora, afinal temos meses de diferença.

Em primeiro lugar deixa-me desejar-te Bom dia e dizer-te que a Marlene vai levar-te hoje o café, mas um pouco mais tarde porque ela só entra às 9h30.

Eu hoje não vou. Nem amanhã. Nem depois. Na realidade, não irei mais. Tentei explicar-te vezes sem conta como me sentia, o que sonhava. Um dia falámos inclusive de viagens, lembras-te? E tu disseste que um dia me levavas. Bom, as viagens das férias eram para a família, as viagens de negócios não eram para as assistentes. Eu compreendi sempre. E quando eu te disse que adorava fotografia, que inclusivamente estava a fazer um curso especializado, tu não prestaste atenção. Acredito que gostavas de me ter perto de ti, afinal “ser assistente do chefe de redacção era uma função especial”. Dizias de boca cheia, esquecendo que tinha o curso de jornalismo. Sabias que eu tinha um curso?

Hoje estou a caminho de Nova Iorque. Comprei apenas o bilhete de ída e, como certo, tenho apenas o apartamento da minha amiga de infância em Newark e um estágio na revista People&Travel que consegui através daquele teu amigo que tentou levar-me para a cama depois do jantar em que me fizeste acompanha-lo. Ainda assim foi um bom contacto.

Não sei onde irei viver ou como, mas isso agora não importa. Eu sempre me importei com tão poucas coisas, e tu sempre me encheste de relógios, colares, anéis. Nunca reparaste no meu olhar desolado, pois não? Agora vou fazer o que sempre sonhei, viajar, correr o mundo, vê-lo com os meus olhos, filmar as suas cores pela minha retina e espalha-lo em milhares de fotografias para quem queira viajar comigo também. Vou ser muitas, vou ter tantos comigo. Nunca estarei só.

Podia ter ficado contigo o resto da vida Francisco, eu sei que dez anos era o bastante para me considerares “tua”, e a única coisa que me prendeu foi essa algema inquebrável que era amar-te. De uma forma submissa, incondicional, incompreensível… Deixei de ser eu para ser “a tua assistente”, deixei os meus sonhos, para sonhar contigo. Francisco, consegui abrir a algema com bastante dificuldade, levei meses a força-la e a desistir. Mas um dia ela abriu-se assim de repente quando te ouvi dizer qualquer coisa como “Clara, que seria eu sem ti”. Percebi que as nossas algemas eram falsificadas, o nosso relacionamento unilateral. Eu dava e tu recebias. Acho que irei continuar a amar-te, de uma forma estúpida e incompreensível, numa distância que acalma as desilusões e amplifica o que de melhor vivemos. Agora vou viver para mim, para os meus sonhos sem rumo, sem colares, anéis ou relógios, sem aquilo tudo que me deste e eu vendi para vir para aqui. Nova Iorque é o começo, mas o mundo inquieto lá fora, não tem fim.»

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias

publicado às 23:09

Fábrica de Histórias

por Closet, em 11.12.11

Ser perfeito

 

E se um dia acordasses e todos à volta fossem diferentes de ti?

Se ninguém tivesse orelhas, ou tivessem só um braço, ou tivessem apenas 4 dedos?

Quem seria realmente “deformado”?

Num mundo onde não somos todos iguais (e que triste seria sermos todos altos, elegantes, de olhos azuis, pele morena, de voz grave, …), se nada nos pudesse distinguir, nada podíamos também valorizar e evoluir, aprender como as idiossincrasias de cada um nos torna únicos e especiais. 

 

Contaram-me a história de um cão que nasceu sem braços, ou deverei dizer sem as patas dianteiras, porque é de um cão que se trata. Na verdade nasceu com uma pata dianteira mas, por ser “anormal”, teve de ser amputada. Este cão foi rejeitado pela sua deformidade pela própria mãe e pelo dono, colocando em risco a sua sobrevivência. Mas apareceu uma mulher, poderei chamar-lhe visionária, que conseguiu vê-lo mais além, não como um ser “anormal” mas como um ser diferente e especial. Decidiu cuidar dele e ajudá-lo a viver com as suas características próprias, aquelas mesmas que o tornam único. Com bastante treino, em seis meses o cão aprendeu a andar erecto, como um humano, com as duas patas que tem. Aberração? Porquê? Ele agora anda por si, é autónomo e feliz. Porque teve fé, foi este o nome que a sua visionária lhe deu - “Faith”. O cão corre o mundo e é um exemplo de como se pode viver, ser amado e feliz, sendo diferente.

 

Num mundo ideal não existiriam "deformidades", mas "características" e assim amaríamos incondicionalmente todos os seres tal como são, independentemente das suas supostas diferenças.

 

Bastava pararmos para nos questionar “o que é ser perfeito?

Será ter um corpo perfeito ou uma alma perfeita? Será ter os parâmetros “normais” e estereotipados físicos e comportamentais, ou ter a capacidade de agarrar a vida e amar com garra o mundo em redor, ainda que muitos invisuais continuem a chamar-lhe “deformado” ou “deficiente”?

 

Poderia falar de pessoas, que infelizmente o assunto não seria totalmente alheio. Mas a causa de que falo aqui é dedicada aos animais abandonados em canis e gatis por serem doentes, diferentes ou “deformados”. E há tantos… Tantos à espera de visionários que acreditem neles, que os amem genuinamente, capazes de ultrapassar barreiras e fraquezas e assim, torna-los verdadeiramente diferentes pelo simples facto de serem únicos, especiais e felizes.

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias

 

 

A história de Faith pode ser lida aqui.

http://hbjunior19.wordpress.com/2011/08/19/um-cachorro-chamado-faith-fe/  

 

 

 

 

 

 

 

 

publicado às 14:23

Trends

por Closet, em 06.12.11
Há 2 anos atrás aprendi uma coisa no mundo dos blogs - nunca escrever nomes de livros ou de escritores portugueses.
Isto porque cometi o belo disparate de falar de um livro no dia do seu lançamento como podem ver aqui http://omeucloset.blogs.sapo.pt/76850.html
E tudo seria pacífico se falasse efectivamente do livro, de preferência bem, mas (há sempre um "mas" nas minhas histórias) eu falei de quase tudo o que me aconteceu naquele serão cheio de peripécias menos do livro e, como se não bastasse, ainda referi que nem estava interessada no tema, as tendências para os dois anos seguintes,  mas apenas em aprender a mexer no telemóvel novo que tinha... Não, não fui feliz...
Eis que no dia seguinte tinha um comentário simpático de um nome que me era familiar... nada mais, nada menos, que o próprio autor do livro a agradecer a presença no lançamento apesar de ter sido conturbada. Eu, que até tenho este ar aluado e pareço não ligar a nada, fiquei para lá de mal comigo mesma de tal modo que, no dia seguinte, lá estava eu na livraria a comprar o dito livro que, na verdade, até me interessava já que sou de marketing. Também uns dias depois encontrei o autor no Facebook e mandei-lhe uma mensagem a pedir desculpa pelo post pouco simpático. Desde essa altura é meu «amigo Facebookeano» e tenho aprendido imensas coisas com ele ou através dele.
Hoje tive o prazer de ir ao lançamento do seu segundo livro, que passo a citar propositadamente Harvard Trends, desta vez bem comportadinha e a horas. Ena! Tomei atenção aos discursos e saí de lá com um exemplar autografado. Good Girl :)
Sobre o livro, e apenas depois de ler duas ou três tendências, posso dizer que se trata de um actual e pertinente ponto de partida para gestores, marketeers ou simples curiosos que pretendam aprender, melhorar e evoluir. Os autores falam de 115 tendências de gestão mundial (provenientes de uma investigação e selecção entre 500), com apenas 2 páginas para cada uma, onde sintetizam, numa linguagem prática e acessível, o essencial com a profundidade necessária .
Este livro, que se assume mais como um conceito, tem como projecto formar uma comunidade de partilha de conhecimentos e experiências. 
Fica aqui a capa do livro (e não, o autor não me pagou para nada disto, simplesmente é uma pessoa que verdadeiramente admiro!)
Parabéns Pedro!

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publicado às 22:56

Fábrica de Histórias

por Closet, em 04.12.11

 

 

 

A vida dá voltas!

 

A vida tem muitas histórias que parecem saídas de um livro. De tal forma parecem irreais e impossíveis de acontecer. Lembro-me por exemplo do meu colega Manel, ou melhor, Manuel Campos, como o tratávamos lá no escritório.

Manuel era um funcionário exemplar, chegava sempre antes das 9h00 e não saía com trabalho por fazer. Era um financeiro metódico, organizado e sempre disponível para ajudar um colega. Podia chamar-lhe um colega “perfeito” não fosse o seu feitio reservado. Demasiado reservado. Se a nível de trabalho não se lhe encontrava um defeito, a nível pessoal ninguém o conseguia arrancar para um copo, uma jantarada ou apenas para uma conversa.

- Manuel, hoje vamos jantar todos a Santos, queres vir?

E Manuel abanava a cabeça imediatamente escondendo-se atrás no seu ecrã do PC. Manuel era incrivelmente tímido, sempre vestido impecavelmente com fatos escuros cinzentos, camisa branca e gravata às riscas. Durante os 6 anos que trabalhou connosco não lhe conheci outra indumentária e cheguei a pensar que não teria mesmo outra roupa, nem calças de sarja ou de ganga, um casaco desportivo ou um pólo. Durante anos questionávamos como se vestiria Manuel ao fim-de-semana, imaginando-o unicamente com um fato cinzento e camisa branca.

Na verdade poucos lhe conheciam a voz, já que ele mal falava. Sempre que podia respondia às solicitações por e-mail e respondia a quem o interpelava em voz muito baixa, olhando para baixo por detrás daqueles óculos de lentes grossas cheios de dedadas.

Manuel era um homem baixinho, franzino, de rosto oval e cabelo liso sempre muito bem penteado com um risco ao lado visivelmente marcado. Tinha quarenta e tal anos, ninguém sabia quantos ao certo, e era definitivamente um indivíduo tímido e introvertido. De tal forma a alcunha dele era “múmia”, já que era daqueles que entrava mudo e saía calado. Ninguém sabia sequer onde morava, e foi a saca-rolhas que lhe arrancámos que não era casado nem tinha filhos, já que tinha sido motivo de aposta entre a malta do escritório.

 

Certo dia de Junho fui arrastada por duas amigas para ir até à feira de Oeiras.

- È giro, come-se umas sardinhas, depois uma fartura!

Diziam elas para me convencerem, já que eu não suportava aquela confusão de gente e barulho.

Uma delas tinha dois filhos gémeos de 6 anos que, não só nos obrigaram a engolir o jantar onde fiquei com espinhas atravessadas na garganta, como não sossegaram enquanto não conseguiram convencer-nos a ir aos carrosséis. Sim, aquele lugar fantástico, cheio de carrinhos de bombeiros, girafas, cavalos, zebras, caldeirões que giram até alguém vomitar lá dentro... E tudo com luzes que encadeavam qualquer criatura que não trouxesse óculos escuros. Depois havia aquelas buzinas fantásticas que fuzilavam todos os presentes antes de começar uma nova “corrida”.

- Vem tia Rita, vem! – Imploravam os pestinhas empurrando-me para o caldeirão dos vómitos. E ali estava eu, resignada a uma viagem de tonturas, ajudada pela infeliz música pimba que adornava o ambiente. Quando uma voz berrava alegre e estridente num megafone:

“E está quase a começar mais uma voltinha, subam todos, meninos e meninas, senhores e senhores, velhinhos e velhinhas, que isto vai começar aaaaaa rodarrrrrrr”

E a criatura do megafone aproximava-se do nosso caldeirão, animadamente a gritar quase a perfurar-nos os tímpanos. Via-o de costas a acenar para quem estava lá fora, aos saltos, rodeando os cavalos e as zebras, com uma alegria invulgar.

“Venham, venham! Ninguém tem medo de rodarrrrr, subam todos que está quase a começarrrrr”.

Ainda com a boca enfiada no megafone chegou ao pé de nós de repente para pedir os bilhetes. Estendi os 4 bilhetes contrariada, quando os nossos olhos se cruzaram e eu gritei:

- Manuel?

 

 

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias.

publicado às 23:11


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