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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
O conto que escrevi para o curso começa com a frase “Todas as decisões são imperfeitas”.
Na verdade poderia ter feito uma autobiografia e não escreveria sobre algo muito diferente, antes "todas as manhãs são imperfeitas", ou melhor, "eu sou imperfeita todas as manhãs". Não sei se daria um conto, uma novela ou um policial… mas sem dúvida teria uma crítica fortissima… e meteria fios enrolados, guerras com torniquetes, discussões com maquinistas e choques em cadeia no fim das escadas rolantes.
É que todos os dias de manhã sinto-me mesmo imperfeita… bom, ao longo do resto do dia também, inúmeras vezes, mas não penso muito nisso…
É de manhã, quando levo as crianças ao colégio, no meu papel mais genuíno de mãe, que me sinto mesmo… imperfeita. Pronto, já disse, desabafei… sou uma mãe imperfeita. Assumo.
Porque me atraso constantemente e mudo 400 vezes de roupa (e não, não é porque tenho as tarefas domesticas para fazer, porque sempre tive empregada, apesar dela agora ter ído para o Brasil e nem sei se vem no próximo mês se no próximo ano... mas tenho e sempre tive ajudas perfeitas), porque me esqueço de verificar na véspera se tenho o raio do dinheiro trocado para o parquímetro (e lá vou eu a correr de socas com 7 cm de salto a um café para trocar dinheiro, e lá ficam os meu dois caçulas à espera a bufar no carro, o mais velho invariavelmente a chorar… sim, porque ele sabe que tem uma mãe imperfeita e o mais novo ainda nem se apercebe disso… e lá tenho de consola-lo a caminho da escola, pedir-lhe mil desculpas e prometer-lhe o impossível, enquanto ele resmunga “já não tenho tempo de brincar, vou chegar em cima da hora”… e eu lá vou frustrada com a minha estúpida imperfeição de gerir horários e necessidades e prioridades).
Para ajudar a festa matinal, o portão da garagem do condomínio, aquele que me arrancou em tempos o para-choques traseiro do carro, está avariado. O que me faz quase deslocar um braço a abri-lo manualmente e... não conseguir fecha-lo... "momy não consegues?"... pois a momy é imperfeita e não consegue mesmo, só o papi... e lá vou eu a soprar deixando o portão aberto sob os olhares resignados dos meus filhos...
Depois continuo imperfeita... quando tento passar nos torniquetes da CP e o passe não funciona... pfff... acabou a validade... e a fila está para lá da fronteira de Espanha e resolvo tirar um bilhete nas máquinas... mas aquelas máquinas verdes inteligentes também são seres estranhos, alígenas que aterraram neste mundo para nos complicar a vida e, à quarta tentativa e com o stress da fila por detrás de mim (agora também nas máquinas para além das bilheteiras), lá aceitei a ajuda de um desconhecido, com ar de emproado por sinal, mas perfeito, que tirou-me o estúpido bilhete...
Cheguei invariavelmente atrasada ao trabalho para mais um dia ... imperfeito.
Pronto... e foi um desabafo ... de quem vive rodeada de perfeição...
Todas as decisões são imperfeitas, sufocam-nos de perguntas, cercam-nos de dúvidas.
Encontrava-me naquele limbo, onde se pesa as decisões. Perguntava-me «quantas vezes a vida nos dá uma segunda oportunidade?» Poucas, eu sabia. «E uma terceira?» Questionava-me. Talvez nenhuma.
Todas as decisões são imperfeitas. Rasgam-nos pelo que largamos e deixamos ir. Deixam-nos a balançar o corpo num abismo enorme da memória, lembrando que, a qualquer momento, podemos cair.
O passado não se recupera. Percebi isso no primeiro segundo em que te reencontrei . Corri para ti, desenfreada, como louca, todo um momento a pairar deslocado no tempo, preso por fios. Como louca amei-te novamente, com a mesma intensidade, da forma que consegui. As dúvidas e as perguntas rodopiavam num looping gigante dentro de mim. Com a mesma insanidade, acreditei, mais uma vez, que era importante para ti.
A verdade única e constante é que tu nunca me amaste e eu nunca te esqueci.
As promessas são como as decisões: imperfeitas. Trazem consigo a condenação temporal do "para sempre" ou do "nunca mais".
Dei-te tanto e nunca te prometi nada. Prometeste-me sempre tanto e deste-me tão pouco. É esta a ironia do destino estilhaçado.
Lamento cada momento que não te tenho, que te sonho exausta, que é o acordar e nem sequer saber de ti. Choro a raiva desta obessão minha inimiga, que é querer não te querer. O cheiro da pele que ficou impregnada nos meus sentidos. O desejo incontido de te abraçar só mais uma vez.
Aos poucos deixarei de esperar-te e voltarei a acostumar-me a viver sem cor de fundo. Não acredito que vá voltar a ouvir a tua voz aveludada, sentir os teus olhos e saborear o teu sorriso. Guardarei os contornos do teu corpo gravados na pele. Na alma trarei o teu silêncio comigo. Sufocando cada palavra que não te disse, cada mal entendido. Diz-me, é esta a violência da distância ? É este o meu castigo? Um silêncio perpétuo emsombrado de incompreensão, embriagado em remorsos do que poderia ter sido.
Todas as decisões são imperfeitas. O passado não se recupera. Será este o nosso último capítulo?
Desenhou-lhe o mapa a caneta no papel. Rabiscou como ele sabia. Tracejou a direcção com setas, indicou-lhe a estrada por onde passava, as rotundas onde virava e onde saia.
Ela entrou no carro e seguiu o mapa sem hesitar. Mais pelo instinto do desejo, do que pela precisão do desenho que levava consigo. A noite não a assustava, nem os atalhos desertos, ou a escuridão das estradas que percorria.
Hoje é apenas um mapa perdido num caderno. Encontrou-no numa mala, largado entre folhas arrancadas, abandonado, como a razão daquele caminho sem sentido. Ainda o guarda, mesmo sabendo que nunca mais a levará ao mesmo destino.
Não se permite questionar o porquê. Os mapas não têm explicação, são caminhos.
A Piscina onde eu não entrei...
As bicicletas onde não andei
O lugar onde fiquei
e as musas inspiradoras com sonantes Méeeeeee!!
As 18 páginas que escrevi aqui!
Deixo um cadechido do conto... a história dos protagonistas há 18 anos atrás!
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Fazia agora 18 anos, também uma noite quente de Junho. Estacionaram junto à praia e caminharam pela areia, Margarida carregava as sandálias que baloiçavam na mão e sentaram-se à beira mar num silêncio tranquilizador. Não disseram nada invadidos pela estranha sensação de estar sozinhos naquele momento, tendo apenas como testemunhas o marulhar das ondas e a lua que rejubilava intensa no mar.
Afonso desafiou-a subitamente:
- Vou-te fazer uma proposta indecente: despe-te e vem nadar ao luar!
Despiu a camisa e as calças de ganga e foi assim mesmo, de boxers, a correr em direcção ao mar. Margarida ouvia-o gritar:
- Guida, vem! Está óptima!
Margarida não era tímida, apenas nunca quis ser mais uma conquista do Afonso o que, por diversas vezes, tornou-se bastante difícil não ultrapassar a barreira invisível entre a amizade e o desejo. Não negava nos seus mais íntimos pensamentos que o considerava atraente e que por vezes passou-lhe pela cabeça quebrar esta mania e acabar com a frustração que era estar a um palmo dos seus lábios sem o beijar. Contudo, resistira sempre, talvez por medo de estragar aquilo que, mesmo em forma de tempestade, chamavam amizade.
Mas naquela noite não lhe apeteceu pensar em nada. Não sabe se terá sido da sangria, ou da solidão que o mestrado lhe provocara, mas deixou-se ir à deriva.
Largou o vestido na areia e correu para a água em roupa interior. O mergulho libertou-a e os braços quentes de Afonso puxaram-na de novo para a vida. Para outra vida. Onde a pele duplamente arrepiada de frio e de desejo, era envolvida pelo corpo moldado em perfeição ao seu, num abraço que se fez beijo. Num beijo que a prendeu.
Ficaram no apartamento dos pais de Afonso em frente à praia. Margarida não lhe fez perguntas sobre quem ele já tinha trazido para ali, ele também poupou-a de revelações. Naquela noite as palavras estranhamente escassearam, dando lugar a gestos despidos de pudor. Exploraram-se lentamente e perceberam que os seus corpos comunicavam melhor sem palavras. Qualquer conversa seria inútil e demolidora. Foi por isso uma noite muda, largada aos sentidos mais puros, aos desejos mais básicos. Roçaram cada pedaço de pele, cheiraram-se e saborearam-se fascinados. Adormeceram já de manhã e Margarida não foi embora. Era a primeira vez que dormia com alguém sem ter vontade de acordar. Era a primeira vez que ficava e não fugia e, mesmo assustada, deixou-se ficar mais um dia e mais uma noite.
No Domingo acordou cedo e ficou sentada no parapeito da janela a ver o sol nascer. Foi uma manhã longa de despedida. Despediu-se do mar que por uma noite lhe pertencera, do corpo nu de Afonso enrolado no lençol a dormir. Despediu-se do silêncio das perguntas incómodas e das respostas vagas, das mentiras. Do vício das explicações absurdas.
- Vou para Espanha durante duas semanas, mas logo que voltar telefono-te – disse ao deixa-la num quarteirão perto de sua casa.
Margarida limitou-se a acenar.
Três dias depois partiu para a Austrália.
Há dias abandonados. Povoados de sofrimento e inquietação. O fantasma que entra de rompante pela sua casa assombrada. Invade-a, de tal forma que as paredes estremecem. O chão de madeira gasta range e abana, as luzes apagam-se fúnebres na solidão. Até as chamas das velas se encolhem e o peito arde-lhe mais violento do que um vulcão. Treme, "de medo" pensa... não dele, do fantasma, mas por saber que a qualquer momento deixa de o ver. Desaparece, indiferente ao que ela sente, sem lhe dar explicação.
Moribundo, habita há décadas na gaveta da memória, desarrumado na imaginação. De tal forma nítido que ela atreve-se a dar-lhe um rosto, um corpo e até um nome. Por vezes hesita, não sabe bem. Mas é um fantasma, não duvida. Restícios do tempo que passou por ela apressado, rasto de caminhos paralelos distanciados em quilometros de mágoa e desilusão. O fantasma persegue-a, num sofrimento que a consome, sem piedade, em dias abandonados pela estranheza insuportável da realidade.
"Porque te procurei? ... "Porque voltaste?".
Um silêncio incómodo, injusto, transpira raiva e incompreensão "Porque te perdi, mais uma vez?".
Depois de um convite inesperado para ver a Ivete no Lounge VIP (ena ena! Adoro-te amiga! adorei a pulseirinha, senti-me num Resort!!)...
e já agora... depois de entrar na sala de ginástica para fazer a minha 1ª aula com o personal trainer (sim, aquele que me queria pesar, imaginem... no way, dêem-me aranhas, ratos, osgas ou abelhas... balanças? ... jamais!!... e lá teve de se desenvencilhar com um rol de perguntas chatas e nada de peso e idade... 30 e tal serve!)... bom, entrei no vestiário e saí passados 5 minutos de telélé no ouvido a acenar-lhe "sorry, fica para a próxima, hoje a aula é com a Ivete" ... e lá fui eu esbaforida, perder calorias VIPs... incluiu cerveja à borla, líquidos, right??!
Depois de um dia de "férias" para assegurar as compras, roupas e ... everything I can do but no one cares ... cá em casa...
Estou de partida para 3 dias de Retiro de Escrita aqui .... sim, parece-me muito bem! Tenho máquina à prova de água... o PC ... Not :(
Quinta Alcaidaria-Mor
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«Cada dia que passava aliviava um pouco mais a sua angústia. A verdade, abafada como um pano pela garganta, desaparecia. Por ser mais fácil, mais conveniente, vivia uma mentira como verdade e habituava-se a ela, como a própria pele, a uma velocidade assustadora. Acredita com fé, porque é a mentira que a acalma, tranquiliza e derruba os fantasmas que dançam em seu redor.»
do meu "dizem que vai ser um conto"!!
Um dia escrevo sobre ti, outra vez. Um diz escrevo. Escrevo-te. Direi tudo o que tenho entalado, sufocado, por dizer. As palavras enterradas dentro de nós habitam-nos como mortos-vivos, assombram-nos como fantasmas abandonados. Perseguem-nos, sombras sanguinárias no silêncio da mágoa e da culpa. Um dia escrevo. Se as palavras, moribundas, vierem à tona, emergirem de rompante outra vez.
Estou a tentar escrever um conto, estou a tentar não me contradizer e baralhar enquanto conto o conto... bom, estou a tentar (quem me conhece pessoalmente sabe que é quase quase impossível..well, I'll try)... e estou a trabalhar arduamente! Rescrevo, rescrevo, rescrevo e estou sempre insatisfeita... (não, não estou deprimida, sei que é mesmo assim... o prazer do processo de escrita é maior do que o resultado em si), e entro nas personagens de tal forma que por vezes tenho de abanar a cabeça para elas sairem novamente dentro de mim... mas confesso, sabe-me bem experienciar outros corpos e viver outras vidas, ter outra voz, outro rosto. Mudar, ainda que em ficção, faz-nos resnacer um pouco.
Fica aqui um pouco do meu conto que avançarei (espero e assim o dizem) no Retiro de Escrita que vou fazer no final desta semana. 3 diazinhos SÓ a escrever, é dose!
Para quem gosta de histórias, retalhado do meu..."dizem que vai ser um conto"! O tema? Acho que é sobre o "segredo".
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Ficaram os dois sozinhos, invadidos por um silêncio desconfortável. Sem trocar uma palavra foram caminhando devagar pelo passeio largo de cimento. Num compasso lento, incomodamente ritmado. Como se cada passo os aproximasse mais e, ao mesmo tempo, engolisse cada dia que viveram afastados.
Os prédios altos, todos iguais, cercavam-nos como o tempo, aquele gigante imenso e assustador que os diminuía. Os olhos vagueavam no chão entre a berma do passeio e as escadas dos prédios desertas. De mãos nos bolsos, também elas vazias do que dizer. Escondiam-se no confortável tecido das calças ou do casaco de cabedal. Também as palavras esconderam-se cobardemente, primeiro no trabalho.
Margarida falou do projecto na Grande Barreira do Coral e Afonso explicou os avanços da farmacêutica no combate da diabetes. Mas nenhum dos dois estava interessado nesta conversa e, rapidamente, o assunto resvalou para a família.
Sempre mais reservada, Margarida deixou Afonso falar. Falou da mulher, Cristina. Na constante dificuldade em conjugar horários com ela e em como andavam sempre desencontrados. Questionava-se se era assim mesmo um casamento com filhos, diálogos interrompidos e esquecidos entre agendas de compromissos e obrigações de aulas de ballet, banhos e histórias para adormecer. Um cansaço mitigado pela ausência de tempo e de espaço para tudo. Perguntava a si próprio se a filha seria feliz ou se sofria num isolamento perpétuo do que deveria ser a partilha a três.
- Tu nunca tiveste esse problema – atalhou repentinamente em jeito de desabafo enraivecido - trabalhar com o marido deve ter sido mais fácil. Vê-se que o Richard foi uma criança feliz.
Margarida escutou-o com a certeza que se iria arrepender do que iria dizer.
- Estamos separados há 3 anos.
Afonso parou-a com o braço bruscamente. Um candeeiro de rua iluminava-os com uma luz fraca e um cão ladrava à sua volta perante a indiferença dos dois. O rosto ficara quase inexpressivo, soltando apenas «pensei que eras muito feliz».
Gosto de pensar que são fases. Aluadas, caóticas, de insubordinação interior.
Fases amargas de incompreensão, de culpa, de raiva cansada pela constante insatisfação.
Mas são fases, apenas e tão só... fases passageiras, circunscritas a um tempo, um lugar, uma pessoa ou a uma acção... ou de tudo um pouco. Fases solitárias e descontentes, que ultrapassarei. Com um silêncio que me acalma os instantes indecisos, confusos. Como apreciar uma tela de pintura, num silêncio poderoso sem qualquer pretensão.
Tenho fases assim, em que me isolo do mundo, dos outros, sem dar explicação.
E como me "acusam" de escrever sobre personagens que falam do seu passado, aqui estão dois que acabam de se conhecer :)
Retalhos - O Vasco
Nunca gostei de táxis, mas devo admitir que aquela foi a ideia mais brilhante que tive nos últimos dias. Não conhecia aquela zona do Bairro Alto e estou certa que jamais conseguiria encontrar aquela ruela escondida, muito menos estacionar por lá. Aquele Bar passava completamente despercebido, entre as casas antigas de uma rua estreita sem qualquer movimento. Era pequeno, uma única sala hexagonal, com cerca de sete mesas. Tinha um balcão pequeno ao fundo onde um empregado preparava um shot para um cliente enquanto conversavam. Junto às paredes do lado direito havia dois sofás de veludo escuro, com mesas baixas rectangulares e pequenas velas dentro de cinzeiros de vidro redondos. Ao centro as mesas eram altas de metal, com cadeiras de ferro. Havia apenas duas vazias, as restantes eram ocupadas por grupos de 4 e 6 pessoas com aspecto de estudantes, que conversavam e fumavam. A iluminação era fraca, feita por candeeiros pendurados no tecto escuro. Ao fundo, um homem com cerca de cinquenta anos tocava ao piano algo que me pareceu jazz. Nunca fui entendida em música, mas os acordes fizeram-me lembrar Nat King Cole, ou algo do género.
Ainda era cedo, faltavam 15 minutos para as 22h. Pedi um Gin tónico no bar e sentei-me num sofás, de frente para a porta. Aumentava dentro de mim uma sensação absurda de ansiedade. Devia ser esta a sensação de um blind date, porque na verdade combinámos o “encontro” por telefone de uma forma quase surreal.
- Olá, estou a falar com a Sofia?
- Sim… - respondi
- Eu sou o vizinho da Carla, quer dizer, o ex-vizinho, … eu fiquei com o seu contacto para lhe entregar uma encomenda que ela estava à espera... – continuou a voz rouca.
- Sim, sim – lembrei-me de repente - O do 3º Dto, certo?
- Vasco.
- Certo – confirmei - o do 3º Dto.
- Como queira, mas prefiro que me tratem por Vasco – respondeu já com voz de pouca paciência.
- Desculpe, não era isso que queria dizer… - tentei desculpar-me - A Carla avisou-me sim, que estava à espera de uma encomenda, deduzo que já chegou.
- Sim, tenho aqui uma caixa em nome dela, penso que seja isto. Como posso fazer para entregar-lhe?
- Humm… eu trabalho em Paço de Arcos, fica longe para si?
- Sim, completamente…eu estou o dia todo em Lisboa.
- Então… - fiquei a pensar o que fazer com aquela rapidez de raciocínio que nos momentos necessários me foge e ainda hesitei uns “humm, aaa,…” até que arranquei – Bom, não faz mal. Eu vou ter consigo a Lisboa, mas tem de ser ao fim do dia, pode ser?
- Depende. Eu trabalho até às 21h30, só se combinarmos a essa hora num bar aqui perto do meu trabalho.
- Num bar? – apanhou-me de surpresa
- Oiça, é um local público, no Bairro Alto, o Nuts na Rua da Vitória. Conhece?
- Pode ser…- senti-me uma adolescente ridiculamente nervosa - Não conheço mas não se preocupe, eu chego lá. Pode ser esta 5ªfeira?
- Combinado então às 22h - Até 5ª! – Rematou.
E desligou. Nem tive tempo de perguntar como ele era nem como o iria reconhecer… Telefonei à Carla, que tinha-se mudado para Londres há duas semanas, e pedi-lhe uma descrição do seu simpático e prestável vizinho…
- Olha não é loiro nem moreno, nem muito alto, talvez um bocadinho, não sei bem anda sempre meio curvado, tem um ar assim meio estranho, sabes? Mas é educado – apressou-se a dizer - só que parece… Sei lá? Tem sempre a camisa meio aberta e por fora descaída, calças sem bainha a roçar o chão…Olha, tem ar de artista, sim, acho que é isso, dá aulas de qualquer coisa relacionada com arte.
Admito que, depois daquele telefonema esclarecedor, a minha já pouca vontade de encontrar-me com aquele sujeito diminuiu drasticamente. Mas lá fui, naquela noite arranquei o corpo quente do meu sofá, onde devorava séries americanas junto à lareira, para uma rua gelada do mês de Novembro.
E foi uma batalha difícil. Estava numa fase introspectiva, não queria conhecer ninguém, nem queria ninguém na minha vida. Tinha-me obrigado a uma espécie de solidão forçada para pensar. De alguma forma senti que precisava de encontrar-me comigo. Conversar-mos a sós. Compreender-me, para então poder compreender e aceitar novamente alguém na minha vida. Tinha decidido que nesse Inverno iria hibernar, só sairia para aniversários e o mínimo possível de eventos sociais.
Como por destino, lá estava eu, naquela 5ª feira à noite, sozinha num bar desconhecido a beber um Gin Tónico e sem fazer a mínima ideia de como seria a criatura que iria aparecer-me pela frente. “Pelo menos deveria transportar uma caixa debaixo do braço, talvez assim seria fácil de reconhecê-lo”, pensei tentando animar-me.
Os meus olhos viajavam pelos dedos do pianista quando o toque do meu telemóvel fez-me dar um salto. Vasculhei na minha mala (admito que é nestas ocasiões em que nos apercebemos que é de facto demasiado grande), quando ele parou de tocar.
- “Raios parta!” - Guinchei irritada.
Foi nessa altura em que ele apareceu na minha frente a sorrir, como num filme de cinema :
- Olá, eu sou o 3º Dto, posso me sentar?
Não consegui esconder um sorriso embaraçado. Tirei a mala de cima do sofá e acenei afirmativamente. Vestia umas calças largas de ganga russa e uma camisa em tons castanhos por fora. Por cima apenas um blusão de cabedal preto. O cabelo castanho-escuro era liso, um pouco comprido e caia-lhe em farripas pelos olhos, algumas já presas por trás das orelhas.
Pediu um Gin com limão para me acompanhar e perguntou-me o que achava do bar.
- Simpático, acolhedor… não percebo muito de música mas estou a gostar.
- Toca-se vários estilos. Agora é Jazz. – Respondeu contente com a minha crítica - O bar é de um amigo meu. Ajudei-o a montar o espaço, e pintei os quadros que estão por aqui - e apontou para as telas nas paredes.
- Pintor, portanto?
Riu-se e abanou a cabeça, furando a rodela de limão com uma colher de pé alto.
- Sou um arquitecto free-lancer, explorado, professor de Desenho em horário pós-laboral e pinto por prazer.
Não pude deixar de simpatizar com a sua sinceridade. Fisicamente não tinha de facto nada de especial, nenhum traço saliente, olhos e cabelos castanhos, pele clara, já com algumas rugas de expressão em volta dos olhos e na testa. “Tinha talvez perto de 40 anos”, pensei…mas era absolutamente normal. Contudo havia algo nele que me prendia a atenção, Acho que eram as mãos, a maneira como falava com elas. Compridas, de dedos esguios e bem cuidados. Elas pareciam falar também, dançando ao som das palavras.
Foram também as suas mãos que me puxaram de repente para ver de perto um quadro. Segurou-me a mão como se fosse uma criança e não tive reacção senão acompanha-lo.
- Vou mostrar-te o meu preferido – e levou-me por entre as mesas do bar.
Pendurada numa parede junto ao pianista estava uma tela quadrada, talvez 90x90cm, com traços e relevos irregulares. “Provavelmente uma mistura de técnicas”, pensei sem dizer uma palavra. À primeira vista parecia-me um jogo de sombras abstracto.
- O que vês? – Os seus olhos brilhavam por detrás dos óculos finos de armação de metal.
- Ahh… - Hesitei nervosa - Não sei bem…
- Não tenhas pressa, podes tocar - Fugiu para trás de mim, tapou-me os olhos com uma mão e com a outra agarrou-me na mão esquerda e segurou-a contra a tela. A pele suave das suas mãos nos meus olhos contrastava com os relevos da tela que tocava ondulando com a sua mão por cima. Arrepiei-me, num misto de ansiedade e medo.
- O que viste? – Perguntou novamente, destapando-me os olhos e largando-me a mão.
- Pele - saiu-me assim sem pensar - Pele suave.
Ele contemplou-me com um ar sério, por segundos que pareceram eternos. Arrependi-me naquele mesmo instante de ter dito aquilo, na verdade foi o que senti e não o que vi e estava longe de decifrar arte em braille. Finalmente, as feições dele assumiram um sorriso rasgado, que lhe mudavam a expressão.
- É isso mesmo - exclamou satisfeito - São vários corpos entrelaçados, vestidos apenas de pele.
(...)
No átrio do metro
No fundo do comboio
No carro que passa ao meu lado.
Qualquer vulto lembra-me, melancolicamente, uma ausência de ti.
As calças de ganga gasta, a camisola por fora amarrotada,
o cabelo desalinhado, a barba por fazer,
o jeito estúpido de andar desengonçado.
A tua sombra fria, oca de verdade
Rasga impune a alma
como quem fala sem sentir.
De voz quente e aveludada,
Dizes um tudo que é nada.
O que é agora, já não é depois.
De repente, um passado fez-se presente,
vencido, sobrevive incompreendido, de egoísmo, de mentira.
«Porque me magoaste outra vez?»
Arranha-me o corpo e sangra de raiva a alma.
Ridicula, abandonada.
O sonho é agora um pesadelo revisitado.
«Esquecer-me de ti» mais uma vez.
Um vulto no átrio do metro, no fundo do comboio, no carro ao meu lado.
Persegue-me a cada instante surdo,
um pormenor mudo teu.