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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Um casal do futuro
João chegou por volta das 19h00 de mais um dia estafante. Era engenheiro civil e estava a supervisionar uma obra de grande envergadura, responsável por muitos fins-de-semana estragados. Carregou no detector digital e entrou.
- Querida, cheguei – gritou da porta enquanto pousava o iSpeed.
A casa estava silenciosa e apenas o gato cinzento de pêlo comprido lustroso, resultado de inseminação especial de um cruzamento entre Gato dos bosques e Persa, veio cumprimenta-lo com um ronronar dengoso, semicerrando os olhos bicolores.
- Olá Ricky, estás sozinho? – perguntou enquanto lhe afagava o pescoço.
Continuou pelo corredor até ao quarto, despindo a camisa suada, entrando na ampla suite de móveis minimalistas rectilíneos, com uma cama quadrada no centro ao nível do chão. Atirou-se para cima dela de braços esticados quando ouve a porta da rua a abrir-se. Um toc toc ritmado de saltos finos percorria o chão de cerâmica, chamando à sua atenção.
- Susana! – chamou intrigado, já que a mulher nunca usava aqueles saltos durante o dia, mas apenas em noites especiais – Estou no quarto.
Susana entrou no quarto com um sorriso a iluminar-lhe o rosto. Vestia um vestido curto e justo de padrão floral, realçando-lhe o peito redondo e delineando-lhe a cintura fina. As suas longas pernas terminavam nos sapatos de saltos agulha que lhe tinha oferecido o Natal passado.
- Uauuuu – exclamou com um ligeiro assobio – hoje arrasaste na empresa, não? Alguma reunião especial?
- Não querido – murmurou Susana dando-lhe um beijo e descendo dos 7 cm de salto – Eu disse-te, hoje não fui trabalhar.
- Não foste? – perguntou João admirado – não me lembro, disseste?
- Sim querido – resmungou Susana, apanhando o cabelo e virando-se de costas para que ele lhe abrisse o fecho do vestido – nunca ouves o que eu digo… olha, preciso de um banho…
Dirigiu-se para a banheira programando um banho de espuma com massagem drenante nas coxas.
João seguiu-a como um cachorrinho de rabo entre as pernas, agarrando o seu Ironberry que acabava de apitar uma mensagem.
- Quem é? – perguntou Susana já enfiada na banheira – olha que temos de marcar aquelas duas noites naquele hotel que me ofereceram, daqui a pouco vem a época alta e está tudo esgotado…
- Humm… é do trabalho – mentiu dedilhando no teclado. Era a Rita, a arquitecta ruiva de 28 anos com quem tinha saído a semana anterior.
- Mas já viste quando é que podes tirar uma sexta-feira para aproveitarmos os três dias fora? – continuou Susana recostada na banheira de olhos fechados.
- Deixa ver – procurava no calendário do seu telemóvel – no dia 23 dá, daqui a 2 semanas, já terminou a fase 4.
- Isso calha no fim-de-semana de 24 não é? Não, esse não posso, já te tinha dito, marquei com o Rui
- O Rui? Qual Rui? – inquiriu João entrando na casa-debanho.
- Já te falei dele, o piloto que gosta de cavalos e de comida japonesa, lembras-te?
- Ahhh… já sei, vi o perfil dele contigo, mas não achas que o podes desmarcar, combinas no fim-de-semana seguinte por exemplo.
Susana abriu os olhos enormes cor de mel em sinal de amuo.
- Querido, eu ainda nem o conheço… E depois ele passa a vida fora, faz longo curso e está sempre nas Caraíbas. Nós somos 92% , tu é que me ensinaste a fazer esse teste… queria mesmo conhece-lo… - e simulou aquele beicinho que deixava João sem jeito – mas podemos ir no outro, vê lá se podes.
João procurou no seu telemóvel ,abanando de seguida a cabeça, desolado.
- Não. No seguinte já marquei no Sábado com a Márcia.
- A Márcia? – perguntou Susana novamente de olhos arregalados – A enfermeira?
- Marcámos a 31, e como ela tem aqueles horários complicados, por turnos, não posso mesmo desmarcar – disse continuando a consultar o telemóvel.
- Não entendo porque repetes essa… - protestou Susana saindo da banheira e enrolando-se num roupão que João lhe estendeu – afinal só tinham 63% de compatibilidade…
João esgueirou-se para o quarto para se descalçar, fugindo à pergunta constrangedora com outra pergunta.
- Mas afinal onde foste tu hoje?
- Eu tinha-te dito, fui almoçar com o Rodrigo.
Susana penteava o cabelo já solto, que lhe descaía pelo roupão.
- Rodrigo… O mecânico? – perguntou João atónito aparecendo de novo na casa-de banho.
- Sim, esse mesmo. O mecânico de automóveis, de Loures e que gosta de snooker.
- Tu foste assim vestida para um mecânico? – João soltava agora uma gargalhada.
- Fui, e então? – perguntou Susana olhando o marido através do espelho.
- Então? – ripostou – é um disparate… É assim como dar pérolas a porcos! - E seguiu para o quarto abanando a cabeça descrente.
Susana seguiu-o com um sorriso rasgado nos lábios.
- Pensa o que quiseres, mas foi uma tarde maravilhosa. De tal forma que já marquei com ele esta sexta-feira.
- Esta sexta-feira? Mas, mas… - gaguejou João – Nós já tínhamos combinado ir ao cinema, é a estreia do Faraway Galaxy.
- Querido, já sabes que não suporto esses filmes… olha, vai ao site e arranjas uma companheira com esses gostos de certeza, tu safas-te bem!
- Susana, tu sabes bem que as mulheres que gostam destes filmes são todas horrorosas, peludas e de aspecto assustador… até para uma sala escura… - gritou João irado.
- Então põe lá que queres companhia para um filme romântico e depois nas bilheteiras inventas uma desculpa qualquer… João, tu safas-te! – insistia Susana passando-lhe a mão pelas costas – Tu é que me ensinaste a utilizar aquilo, vais ver que resulta.
- Sim, assim a mentir claro que consigo… - acenava João enquanto lhe desapertava o roupão com entusiasmo e beijava o pescoço – mas já te disse que não é suposto mentir…
Susana mordiscava-lhe a orelha sussurrando-lhe ao ouvido:
- Amor, o que é que isso importa? Achas que eu hoje passei a tarde a jogar snooker?
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Texto escrito para a Fábrica de Histórias