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Fábrica de Histórias

por Closet, em 06.03.11

 

O papel principal

 

Toda a minha vida foi um carnaval. Sentia que, de alguma forma, era preciso representar, vestir um fato, colocar uma máscara e subir ao palco. Sempre me rodearam de exigências e expectativas tão díspares como confusas, e percebi que se tornava tão mais fácil pintar o rosto da cor que todos querem, ser muitas ao mesmo tempo.

Ainda me lembro de ser criada. De vestinho branco e touca na cabeça. Era obediente, não reclamava e respondia sempre aos teus caprichos. Tratava-te por "senhor" e nunca te negava um desejo. Sabia qual era o meu papel e nas noites em que não me chamavas, recolhia-me no meu quarto e chorava por não ser a principal. Aquela mulher alta que te visitava , de vestidos caros compridos e que fumava cigarrilhas... Ouvia-vos em gargalhadas regadas pelos copos de vinho que no dia seguinte eu levava para a cozinha. Vivemos assim anos, não sei quantos. Numa submissão incompreensivel, onde eu não sabia quem era, nem o que queria.

Até que um dia decidi mudar. Ser rebelde, sentir a adrenalina da vida. Fui empregada de um cabaret famoso, vestia roupas decotadas e sensuais. Todos me desejavam e pagavam só para sentar-me na sua companhia. Quando tu lá entravas eu estava sempre no colo de alguém, a beber copos de champanhe e a rir. Aquelas gargalhadas fininhas provocantes que deixam os homens loucos. Eu treinei-as vezes demais. Nessa altura tu já não eras para mim o nobre de fato ostensivo e olhar superior. Vinhas cabisbaixo, parecias um pobre engraxador de sapatos, amarrotado. Espelhavas a derrota- O que a vida tinha feito de ti? Não quis saber.

Conheci um homem rico, um mosqueteiro nobre, que perdeu-se de amores por mim, pediu-me até em casamento. Eu? Imagina... Não recusei. Tornei-me uma verdadeira dama da corte, rodeada de polícias que me acompanhavam onde quer que eu desejasse ir. Vendo bem, os polícias perseguiam-me, mais do que me defendiam... O meu noivo revelou-se um ciumento possessivo, violento e sempre alcoolizado. A minha vida tornou-se uma prisão. Precisei de fugir novamente, mudar de fato, ser outra.

Encontrei-te por acaso numa esquina de um bairro, trocamos apenas duas palavras «olá» «como estás?» mas os teus olhos acendiam um luz no interior que me seduziram. Vendo bem, parecias um bobo da corte, envergonhado e desajeitado. Com um fato de xadrez e um chapéu torto. Com caretas esquisitas, fizeste-me rir. Que saudades eu tinha de rir, de ti. Sem pensar, aceitei ir contigo. Começar de novo, noutra cidade. Como se fosse mudar de palco, de cenário, todo o guião. Desta vez com o papel principal na tua casa, na tua vida, no teu coração.Quiseste-me como tua mulher e amante, sem máscara. Eu, despida de representação. 

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias

publicado às 22:54


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