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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Outono acordado
Este Outono tinha chegado com uma surpresa inesperada, uma bomba que tinha explodido na sua vida. Uma bomba que ela procurara tantos anos, por toda a parte, mas que já julgava perdida, desactivada. E, de repente, ela surge e estilhaça, mais uma vez, a sua alma fragmentada. Espalha a magia por todo o seu corpo que reage mecanicamente, sem saber. Tinha de ir.
- Leva só bagagem de mão?
- Certo – respondeu sem desviar os olhos do bilhete que segurava.
- Mas o seu bilhete é só de ida? Vai ficar pouco tempo? - Continuou a funcionária magrinha de voz esganiçada e olhar provocador.
- Não sei. Logo se vê – respondeu agarrando os documentos e voltando as costas.
“Passar os seguranças, entrar no avião, não pensar em nada” era este o percurso, uma coisa a seguir a outra. Não podia distrair-se a pensar em mais nada. Não podia voltar atrás. Estava ali agora, tinha de ir.
Era para Veneza, mas podia ser para outro sítio qualquer. Nunca tinha ido a Itália, mas isso também não a preocupava. O lugar era irrelevante. Desde que ele estivesse lá para a receber. Desde que ele estivesse lá. Desde que ele estivesse. Repetia.
Este era um Outono de esperança, apesar da batalha sangrenta de sentimentos com que se debatia no interior. Ao contrário do Outono de há muitos anos atrás, onde a esperança foi substituída por uma lágrima grossa de tristeza que lhe inundou o rosto durante os Outonos seguintes. O Outono onde os seus planos de vida foram destruídos e a desilusão apoderou-se de si, esvaindo-se lentamente até não restar um pingo de emoção. Até a pele transformar-se num tom pálido frio e não distinguir o aroma de um perfume primaveril. Esse Outono, de há muito tempo atrás, levou com ele tudo o que ela acreditava, os sonhos mais inocentes e puros, tudo pelo qual ela corria.
Nunca mais tinha corrido assim atrás de nada, nem de ninguém. Nem tinha amado alguém sequer, talvez porque passou a acreditar que amar era apenas um verbo do dicionário. Uma palavra, que se escreve ou fala, e que ela julgara ter cicatrizado na sua pele quando pensava ser muito mais que uma palavra, que um verbo para conjugar.
Quinze anos depois, ou talvez mais, perdera a conta, o Outono rompera novamente na sua vida, pedindo uma nova oportunidade. Levava-a a Veneza, por ironia ou destino, uma cidade povoada de amor. O amor que perdera e que, agora, como um boomerang voltava para trás. Sedento. Ousado. Um amor mais velho, marcado pelo tempo que as fotografias não escondem. Um amor doente de louco, demente, de quem não pensa antes de falar. Encontrou inesperadamente o amor de sempre, como se o tempo não tivesse passado, como se os ponteiros não tivessem avançado do lugar. E agora não sabia como voltar atrás. Como ignora-lo? Fingir que não existe? Tinha de o ver, tinha de o abraçar, tinha. Repetia.
Agora que estava a poucas horas de chegar, os 900km/hora era uma velocidade ridicula, insignificante, comparada com o batimento descompassado do seu coração. Nervosa, como uma criança no primeiro dia de escola, como uma adolescente no primeiro beijo. Ansiosa, questionava-se se o Amor que estava adormecido, enterrado, podia acordar. E como seria, neste Outono, o aperto desse abraço, o sabor desse beijar.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias