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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Invadiu-a uma vontade imensa de baralhar e voltar a dar.
Começar de novo o jogo, com outras cartas, novos trunfos.
Conhece-lo de novo. Ou melhor, conhece-lo. De verdade.
Deitar as cartas na mesa e, sem orgulhos ridículos (porque todos os orgulhos são estupidamente ridículos), jogar limpo, sem bluffs. Apenas pelo prazer de jogar.
Se ela pudesse voltava atrás, e nas cartas que jogava enfrentava o seu olhar, provocante, felino, inquietante, naquela tarde em que anoiteceu rápido demais. Numa jogada irreflectida, violava os seus lábios sequiosos, ali mesmo na areia junto ao mar. Foi ali a primeira vez que os desejou saborear. Ambiciosa, guardou os trunfos, num jogo rotineiro, cansativo, cujo desfecho não tardava a chegar.
Se tivesse oportunidade, baralhava, tudo de novo, sem questionar.
E naquela tarde desencontrada esquecia as regras do jogo, dos trunfos, dos azes, dos reis ou rainhas. Dizia-lhe que o sonhava há demasiado tempo e que os seus braços eram o local onde mais ansiava ancorar.
Se baralhasse de novo, voltava novamente atrás depois de o deixar. Mas já não inventava desculpas para justificar. Beijava-o outra vez de rompante, com a mesma paixão fulminante, mostrando as cartas que tinha na mão. "Desejo-te" gritava-lhe nos olhos supensos, e rendia-se aquele momento, híbrido de loucura e paixão. Repetia aquele beijo embaralhado, desajeitado e violento de quem não pensa em ganhar. Jogava apenas para aquela noite, baralhava e voltava a dar, outras cartas que resistissem a pensar. Se baralhasse, ficaria enrolada no seu corpo apetecido, abrigada como um foragido que não tem onde ficar. Despia-o por fora e por dentro, percorria-o num beijo demorado, lento, até o baralho acabar.
Se pudesse dar de novo, esquecia aquele jogo ridículo, já viciado antes de baralhar.
As cartas ficaram na mesa, tristes, perdidas, à espera que um deles volte a jogar.