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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Sentei-me numa cadeira vazia, receosa. Era a primeira vez que ali estava. Rodeavam-me outras pessoas, umas mais velhas outras mais novas, todas olhavam-me como uma intrusa que acabou de entrar num lugar secreto.
- Boa tarde - disse uma delas que liderava o grupo - temos uma nova amiga, querem dar-lhe as boas vindas?
Acenaram todos, uns com um ranger entre-lábios numa espécie de "olá", outros acenando com a cabeça e encolhendo os ombros, num gesto cúmplice de quem antecipadamente pecebe porque ali estou.
- Quer apresentar-se ao grupo e dizer porque aqui está? - continuou a líder do grupo, uma jovem de vinte e poucos anos, sorria e nitidamente aparentava poucas probabilidades de compreender as minhas razões. Olhei-a descrente.
- Vim saber como consigo deixar uma parte de mim...
- Tabaco, alcool, droga? - perguntou-me sem deixar-me responder - estamos aqui para isso, para enterrar o passado e construir o futuro.
- Não... - interrompi-a - Nada isso. Quero deixar uma paixão que me arrebatou a alma, tornou-se um veneno para o qual não encontro antídoto, um vício que não encontro forças para deixar.
- Humm... - olhavam-me todos horrorizados. Drogados, alcoolicos, fumadores compulsivos.
- Mas é sexo? - perguntou-me interessada uma mulher curvilinea que percebi ser ninfomaníaca.
- Não... é paixão, deslumbre, necessidade intensa de olhar, de impulsivamente falar e descontroladamente imagina-lo por toda a parte a todo o momento.
- E se o vês acalmas? - perguntou o fumador admirado.
- Por vezes sim, naquele preciso momento... para logo depois sentir o vaziu enorme da sua ausência doer-me pelas artérias do corpo.
- Tremuras? - perguntou o drogado.
- Sim, e irritação, também...
- Ressaca - confirmou o drogado acenando compreensivamente.
- Ressaca? de quê? - perguntei confusa.
- De não o teres, não o injectares no teu corpo, não o saboreares nos teus lábios e sentires o aroma do seu fumo -respondem-me quase em simultâneo.
- Mas ele é ... é como uma droga que se esvai em segundos pela corrente sanguínea, um whisky que se engole num trago, um cigarro que quando se está a tomar o gosto acaba... tive-o uma única vez e agora estou a...
- a ressacar - confirma o drogado esfregando o braço escurecido e inchado.
- Ok, estou a ressacar... de um momento de deslumbre apaixonado que agora dá-me tremuras e ansiedade... e o que faço para largar?
Foi a vez da líder do grupo encarar-me estarrecida, provavelmente era o caso de tratamento mais complicado que alguma vez teve..
- Sabe a morada dele?
- Já lá fui mas já não sei se conseguiria ir lá dar, nao me recordo do nº da porta nem do andar...
- E telemóvel dele tem?
- Não. Apaguei-o vezes sem conta, depois acabei por decora-lo, até que puf... desvaneceu-se na minha memória.
- Vê-o diariamente?
- Nem sempre e tento evita-lo.
- E coisas dele, tem? Objectos, fotos, cartas, e-mails?
- Destrui o rasto. Rasguei. Dei. Apaguei tudo.
- Hum... parece-me no caminho certo, contrariou o impulso, desapegou-se de recordações, de bens materiais...perfeito! Então como é que ainda pensa nele? - perguntou-me incrédula.
- Não penso na casa, nem no telefone, nem nos objectos ou fotos... isso apenas constitui um cenário do delito... Penso em tudo o que podia ter dito e feito, no prazer que senti quando me invadia com os olhos arrepiando cada centímetro da minha pele. Penso nas suas mãos, suaves, a tocar na minha pele, deslizando devagar os dedos pelas costas, pelo meu queixo até aos lábios. Penso nos lábios e a tortura de não os poder mais beijar - fiz uma pausa observando uma plateia boquiaberta, de costas presas nas cadeiras - como é que eu faço para não pensar mais nisto tudo?
Um silêncio angustiante fazia ouvir-se o vento que abria uma janela a ranger.
- Sexo, sem medo, atira-te de cabeça - responde a ninfomaníaca - depois vais fartar-te dele.
- Injecta-te, overdose total - responde o drogado - nunca ninguém morreu apaixonado.
- Bebe, embriaga-te nele sem pensar - responde o alcoolico - a cirrose é mas fácil de tratar.
- Saboreia-o, calmamente com os lábios e deixa-o queimar devagar - responde o fumador - o fumo é menos tóxico que o olhar.
Ohei-os perplexa, vicíos com curas dificeis eram mais fáceis de tratar...
- E se vos disser que ele não quer?? É como ter de roubar para me drogar, de me prostituir por um copo de whisky, de viola-lo contra uma parede, de mendigar um cigarro a um estranho e depois ...
Tremeram todos das suas cadeiras, como se aqueles delitos lhes fossem familiares.
A líder do grupo foi ter comigo, abraçou-me e susurrou-me ao ouvido "Não há poções mágicas, nem antídotos para o veneno da paixão. O tempo encarrega-se de a matar".
Naquele dia matou-o
dilacerou-o mais um pouco.
e viu-o num cambalear louco.
Como uma morte que se faz lenta e sombria
a gotas de veneno, uma morte fria.
Matou-o por fora e por dentro. Num sofrimento lento.
Doloroso.
Num apagão definitivo, penoso.
Desistiu e, num golpe fatal,
Enterrou-o vivo,
como se enterra um desejo carnal.
Inacabado. Perdido. Mal resolvido.
Num ritual satânico
incendiou
o corpo que tanto desejava,
o sorriso que a fascinava,
cortou-o em mil pedaços.
Viu na fogueira todo ele arder
entre chamas de ironia
quem ganhava ou quem perdia
não sabia.
Matou-o
Decidiu naquele dia
Não o queria mais ver.