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Vida de Copo

por Closet, em 23.04.10

Este é o primeiro trabalho que escrevi para o meu novo curso... um outro ponto de vista, neste caso, o de um copo! Why not??

Estou a gostar, bastante... na verdade acho-o completamente "speedado" mas bom! na verdade, em 3 aulas já tive 3 dos 4 formadores e, por isso, em cada aula parecia que entrava numa nova sessão dos AA..."Olá, eu sou a... e estou aqui porque" já estou a ganhar prática!!

Bom, aqui fica o "meu" copo! Just to share!

 

Vida de copo ou um copo de vida

 

“Não, não, por favor” gritava enquanto era transportado pelo irritante empregado que balançava desajeitado a bandeja, provocando-me enjoos como se estivesse em alto mar.

E pronto, lá estava eu na mesa de um sujeito de bigode farfalhudo. Já não bastava o cheiro nauseabundo daquele whisky velho que ardia nas minhas entranhas. Ele devia ter alguns 56 anos, olhava-me de sobrolho carregado, como se eu fosse a solução para as frustrações da sua vida... já conhecia aquele olhar e adivinhava até os seus movimentos seguintes, segurava-me com força e trás… ia tudo de penálti.

O roçar daquele bigode peludo, era uma verdadeira tortura. Pior mesmo só quando era acompanhado de uma barba que me escovava e picava sem dó nem piedade.

Mesmo assim, não era assim tão mau viver num bar onde melancólicos acordes de jazz embalavam as nossas noites. Desde que me recordo vivia ali, dormindo encarcerado num armário bafiento, entre prateleiras rectilíneas, num silêncio cansado e soturno. Pudera. Certas noites chegávamos a rodopiar por 10 bocas diferentes. Batiam-nos com os dentes, arranhavam-nos com a barba por fazer, deixavam-nos colado um creme pegajoso, viscoso avermelhado, bafejavam-nos de fumo... Fui experimentando todas as formas de viver. Uns saboreavam, beijando-me demoradamente, outros apressados, ou desesperados, simplesmente engoliam de um só trago como se estivessem numa competição.

Para além dos sabores amargos a whisky, cachaça ou rum, quase sempre despejavam-me pelas costas uma pedra gelada que ia desfazendo-se lentamente deixando-me enregelado...

Havia uns sortudos que apenas experimentavam misturas doces e coloridas, às vezes até tinham direito a uma palhinha amaricada...

Pelo menos não sentiam o odor das bocas quentes a salivarem e a sorverem-nos até não haver réstia de líquido cá dentro...

Todas as noites ansiava desesperado pelo momento em que o empregado desmazelado viesse buscar-me para me entregar aos cuidados do salão de beleza. Uns não aproveitavam aquilo à séria, mas a mim deixava-me como novo. Gostava mesmo daquilo. Um relaxante banho de água quente, massajado por uma espuma macia e perfumada e no final um vento quente que me deixava a brilhar. Saía de lá sempre revigorado, ou não tivesse um porte atlético e robusto. Já aqueles tontos das palhinhas amaricadas iam para uma bacia e eram esfregados à bruta com uma esponja e depois pendurados de cabeça para baixo a pingar. Até tinha pena deles, eram frágeis, muitos partiam a perna e nunca mais lhes punha a vista em cima. Provavelmente iam para um hospital distante e depois já não os traziam de volta. Iam para outro bar qualquer. Às vezes até lhes invejava a sorte. Saíam daquela rotina, conheciam o mundo. Eu estava confinado àquele lugar sombrio de sofás de pele escura comida pelo tempo. Valia-me o jazz e, quando tinha sorte, o aroma de um bom charuto.

O homem de bigode pousou-me na mesa com determinação, fazendo sinal ao empregado que veio com o seu habitual trejeito de andar abanando o rabo. Pousou-me na bandeja e lá fui eu a baloiçar por entre burburinhos de conversas desconhecidas. Até que algo se passou, acho que ele tropeçou, a bandeja virou-se e eu caí. Não me lembro de mais nada.

Acordei dormente num lugar com muita gente, entre copos e garrafas, até vidros. Era desconfortável, uns até estavam por cima de mim, outros debaixo, desarrumados. Mas vi com agrado a luz do sol espreitar por uma frecha lá no cimo, iluminando de imediato o imenso salão verde. “Devem ser as urgências”, pensei. Que confusão! Afastei um estilhaço de vidro, incrivelmente parecido comigo, e deixei-me ficar a contemplar um repentino raio de sol que veio abraçar-me.

 

publicado às 18:47


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