Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]
«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Encruzilhada
Não me orgulho da minha condução. Na verdade - nada. Por algum motivo não passei o 1º exame por entrar numa rua de sentido proibido. Confesso que ainda hoje o faço. Por vezes sem perceber, outras intencionalmente. Porque me apetece, ou porque é mais fácil. Não sei.
A vida também sempre me pareceu uma enorme estrada por onde tenho de conduzir. A vários ritmos e eu nem sempre consegui acertar na mudança certa. Com muitos atalhos, encruzilhadas, demasiadas rotundas.
Naquele dia em que vieste ter comigo estavas com aquele ar de quem andou várias vezes às voltas para encontrar lugar e nem reparou que havia um mesma à porta. Não era costume telefonar-te. Muito menos pedir-te para vires ter comigo, assim a meio da manhã, a um café. Mas vieste. Não me fizeste perguntas e eu não adiantei pormenores, simplesmente desliguei como se puxasse um travão de mão.
Pediste um café à empregada e olhaste-me nitidamente nervoso. Já não te via há mais de 1 mês. Tinhas ído fazer uma viagem com um grupo de amigos para umas ilhas algures no Pacífico e eu não tinha feito mais perguntas.
Sorri-te enquanto mexia o meu café "estás com o cabelo mais comprido" - disse em jeito de quebrar o gelo, embora sentindo-me a derrapar como numa estrada de piso molhado. Abanaste a cabeça que sim. "Tu estás bonita, como sempre"- disseste na tua mudança habitual, aquela 3ª que aguenta o carro mas não o deixar acelerar. Jogavas sempre à defesa. Menos naquele último encontro que tivemos, em que fomos longe demais.
Lembro-me bem como nos conhecemos. Apareceste meio envergonhado para fazer uma massagem, não sabias bem de quê, que te tinham oferecido. Quando entrei na sala já estavas deitado e não escondo que te achei graça, mas mantive-me serena e pedi-te para deitares-te de costas e relaxares. Antes de perceber a cor dos teus olhos, senti a textura da tua pele, o calor do teu corpo e os meus dedos percorreram-te antes de saber sequer o teu nome. (De certa forma ainda acho que a nossa história começou como uma corrida de karts, quando vamos pela primeira vez, com toda a adrenalina apesar de não dominarmos o carro e no dia seguinte temos vontade de repetir mesmo sentindo o corpo todo dorido).
Assim voltaste tu na semana seguinte. E depois outra vez, e outra e mais outra. Durante as massagens nunca trocámos palavras para além de um "olá" e um "adeus". A linguagem gestual era o nosso único território e a simbiose de movimentos começou a tornar aquelas sessões estranhas e confusas. A certa altura parecia que era a tua pele que tocava em mim, que me procurava e conduzia os movimentos.
Foi no dia em que não fui eu a fazer a tua massagem que foste procurar-me, com aquele ar de miúdo mimado. Expliquei-te que tinha tido outra marcação de uma cliente antiga, que não era eu que decidia, era apenas uma empregada.
- "Então e para jantar com a Sara-não-empregada, também é preciso fazer marcação?"- perguntaste ironicamente. Foi a primeira vez que disseste o meu nome.
Respondi com um "depende".
- "Das vagas?" - perguntaste amuado.
- "Depende do restaurante, mas por mim um cachorro quente à beira mar é perfeito" - respondi e desapareci para a sala interdita a clientes.
Ao final do dia estavas lá com um saco com cachorros quentes e cervejas na mão. Foi assim o nosso primeiro jantar à beira mar numa praia da margem sul numa noite quente de Verão.
Naquele dia enfrentei a custo o teu olhar e a voz tremeu quando te disse "Não vim para te pedir nada. Apenas quero que me digas o que pensas sobre o assunto - estou grávida e só pode ser teu".
Um silêncio medonho apoderou-se de nós, a tal ponto que quase conseguia ouvir a loiça na cozinha, a travagem dos carros lá fora, barulhos, apenas. Uma surdez de palavras.
Foi nessa altura em que me lembrei da minha estranha vocação em estacionar de marcha a trás. Parecia mais difícil, mas habituei-me a ver pelos espelhos e nunca directamente. Também tu fizeste marcha atrás naquele beco sem saída. Sem enfrentar os meus olhos, disseste-me que precisavas de apanhar um pouco de ar, que já voltavas, e saíste num arranque brutal.
Fiquei ali sozinha, a pensar se virava para a esquerda ou para a direita. Sabendo de antemão que, para onde quer que virasse, ía ter de continuar em frente, mesmo sem mapas ou direcções, já não podia parar. Claro que estava assustada, como se estivesse a entrar num deserto com o depósito quase vazio. Não tinha os bens essenciais, nem estava preparada para aquela estrada, mas já não podia voltar.
Não sei quanto tempo demoraste, mas entraste de novo no café como um furacão. Parecia que tinhas corrido uma maratona, com a t-shirt colada ao peito e podia ver a tua respiração ofegante.
Pegaste nas minhas mãos sobre a mesa e tocaste suavemente cada dedo. Depois voltaste ao anelar e disseste apenas "falta aqui qualquer coisa, queres tratar disso agora?".
Naquele momento senti-me em piloto automático, inerte, sem reacção. Tínhamos 26 anos. Tu trabalhavas só para viajar. Eu trabalhava... por trabalhar. No fundo eu era um simples Opel Corsa diante de um Porshe, desportivo, sabia bem que não te conseguia acompanhar.
A Leonor nasceu saudável e linda e tu fizeste questão de passar lá a noite na maternidade, tratar da papelada toda, levaste-nos a casa e pediste-me para ficar os primeiros dias, que querias ajudar. Eu aceitei, fui aceitando e tu foste ficando. Mais um dia, depois outro. A cada dia surpreendias-me com uma nova aptidão, acordavas sempre que ela chorava, compravas roupa, chuchas, ías ás vacinas e ao pediatra. Durante seis meses dormiste naquele sofá mal amanhado, lavavas e passavas a tua roupa, compravas e fazias comida. Questionava-me várias vezes quem eras tu.
No dia do teu aniversário fiz-te um jantar e comprei-te uma camisa de uma marca que sabia que gostavas. Desembrulhaste e disseste desconsolado "Estava à espera de outra coisa". Seguraste-me nas mãos e percorreste suavemente um a um os meus dedos. Paraste outra vez no anelar "ainda falta aqui qualquer coisa, achas que já podemos tratar disso?".
Abracei-te como se o mundo fosse acabar no dia seguinte. Beijei-te como se fosse a primeira vez, com o coração a 200km/h. Nessa noite, e nas seguintes, dormiste comigo. Ainda dormes. E em noites de insónia como hoje eu fico deliciada a olhar para ti.
Nunca chegámos a casar, mas deixei-te comprar um anel bonito.
A Leonor já tem seis anos e quando eu vejo-te com ela ao colo, a contar-lhe histórias inventadas pela tua cabeça, percebo claramente como estava enganada. Que não importa a diferença de cilindrada, a velocidade somos nós que controlamos e cada um decide o seu ritmo.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias