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Fábrica de Histórias

por Closet, em 03.04.10

 

Suave como o Lírio de-um-dia

E lá vens tu a sorrir a olhar para mim.

Digo-te adeus apesar de não me lembrar do teu nome. Vens ter comigo ao banco de jardim e abraças-me com ternura. Não me lembro de onde me conheces nem porque vens, mas gosto de conversar contigo.

«Olá Leonor, sou o Miguel» e dás-me o braço.

Depois acompanhas-me devagar. Já deves ter mais de 60 anos, o teu cabelo curto é grisalho e no rosto tens uns traços vincados, marcas do tempo que passou por ti. Uns olhos sempre enlagrimados que seguem cada palavra que digo.

Nos últimos tempos acho que não tenho falado muito, nem com muita gente. Tu és a única pessoa que aparece por aqui e fazes-me companhia. Passeamos pelo jardim, jantas comigo e ficas até me deitar. Não sei porque fazes isso, mas gosto de te ter comigo. 

Sentados no sofá de bambu no alpendre da casa, mostras-me fotografias tuas e daquela que dizes ter sido a mulher da tua vida. Dizes que ela deixou-te um dia, assim de repente, e que ainda esperas que ela volte.

Observo-a bem. Talvez uns 55 anos. Nunca a vi mas quase que sinto que a conheço. Talvez porque também se chame Leonor. Mesmo assim mostras-me fotos dela, várias. Ela sozinha, ela contigo, abraçados e sorridentes. 

«Deviam ser felizes» digo-te e devolvo-te as fotografias. Reparo como as tuas mãos enrugadas tremem e os teus olhos se enchem de lágrimas.

Depois mostras-me fotografias minhas, que eu não sei como as conseguiste. Agarro-as e fico feliz a contempla-las. Pergunto-te se não tens a cores, mais nítidas. Respondes que não. Encolho os ombros e devolvo-te as fotografias que voltas a guardar religiosamente na bolsa que trazes contigo.

Levantámo-nos e caminhamos em silêncio até ao meu quarto, onde partilhamos uma pequena refeição. Pergunto-te se não te importas de comer apenas uma sopa naquela mesinha redonda pequenina. «Não» dizes, «é a minha refeição preferida». Talvez por isso eu sinta tanto carinho por ti. Talvez por isso não te estranhe e deixo-te entrar assim na minha vida. Porque acho-te só e por algum motivo sei que gostas de cuidar de mim, de estar perto.

Apesar do teu olhar triste de quem tem o coração ao relento, abandonado. Lembro-me que eu também tive um amor que me deixou. «Já te contei não já?» Acenas paciente e eu continuo, enquanto voltas-te de costas para eu vestir a minha camisa de noite.

«Só não sei explicar-te bem quando foi. Também chamava-se Miguel. Mas acho que já nem me recordo do seu sorriso. Tenho uma vaga ideia. Sei que às vezes existia, mas já não consigo posiciona-lo nos contornos do seu rosto. Estranho não é?»

«É... e passas por ele todos os dias» dizes, enquanto aconchegas-me na cama.

Respondo-te que não sei. Se passo já não o vejo como antes o via.

Não me lembro sequer como é falar com ele. Antes conversávamos, hoje não sei. Talvez se o vir troco palavras de circunstância. Fugazes, soltas, vazias.

«Então falas com ele?» perguntas-me ansioso.

Não te respondo. Não tenho a certeza. Sinto tudo tão turvo.

Explico-te que não me lembro como o conheci, ou se ainda o reconheço.

Sei mais ou menos onde vive. Acho que conseguia lá voltar, à sua rua. Sim, lembro-me do local, uma rua curva de prédios novos. Mas não me lembro do número da porta nem do andar. Lembro-me do quarto, da cozinha e... do sofá da sala. Sim, lembro-me daquele sofá. Não sei qual era a cor, mas recordo como ficava nervosa lá sentada abraçada a ele e como resmungava que era desconfortável. Depois e ele puxava-me para o braço do sofá e a sorrir dizia"é para estar assim", enquanto entrelaçava a sua perna na minha e ficávamos lá deitados, encaixados até de madrugada. Acho que é desse sorriso que me lembro. Mais nada, na minha memória perdida não habitam lábios sedentos, olhos enigmáticos, pertubantes e mudos.

«Lembras-te disso tudo Leonor? E onde estão esses olhos agora, esse sorriso?» perguntas-me e eu olho-te devagar sem conseguir responder.

Não sei. Talvez nem existam.

Acaricias-me o cabelo e ternamente agarras-me a mão. Eu delicio-me com o teu toque e sussurro-te de repente ao ouvido.

«Lembro-me agora. Como se fosse hoje. Lembro-me dele segurar a minha mão assim, acaricia-la docemente cada milimetro da minha pele enquanto perguntava se era aquele o verniz cor de uva. Eu ri-me, tenho a certeza. Ele não acreditava que uva era cor...».

«E ainda não acredito...» murmuras.

Peço-te para ficares ali comigo mais um bocadinho, até adormecer.

«Claro. Fico sempre. E amanhã estarei cá outra vez, será outro dia» respondes.

«Voltas mesmo? Porquê?» pergunto-te mas já não te oiço dizer «para te lembrar de mim» e quase a adormecer peço-te para me segurares na mão.

«Quero sonhar com ele», digo-te baixinho. Com ele a segurar-me na mão, a percorre-la devagar, arrepiando-me por todo o corpo. É esta a única recordação que tenho dele. Como o seu toque era envolvente, suave e macio, como as pétalas de um lírio-de-um-dia. Digo-te que foi com essa flor com que ele me tocou. Uma flor bela e vistosa, que desabrocha e murcha no mesmo dia.

  

Texto escrito para a Fábrica de Histórias

(dedidado a todos os doentes de alzeihmer, e a todas a pessoas que, pelos mais diversos motivos, estão longe mas trazemos sempre perto)

 

publicado às 22:18


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