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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
My hard Life
"Estas são as palavras que eu nunca te escrevi.
Não por falta de tempo ou vontade. Não porque me faltasse a coragem, por orgulho ou por falta de oportunidade.
Simplesmente porque nunca as pensei ou senti.
A vida tem destas coisas, disseste-me um dia, que ironia... e pensar demais faz mal, às vezes mata. Sacudo a cabeça com agonia.
Cheguei à conclusão que tenho vivido um sonho mirabolante, bucólico, ensurdecedor. O reverso do amor.
Um quadro que pintei de ti, brilhante, apaixonante...contemplo-o devagar para me embalar. Mas é um quadro, o meu quadro, de ti. Nele há um sol a descer no horizonte em direcção ao mar, a areia que acaricia os pés, e a intencidade do teu olhar. Tem tudo, este quadro abstracto, para me conquistar... e eu pinto-o diariamente, sofrendo de uma cegueira antiga, maligna. O quadro tem um copo de imperial vazio, vazio como tu, desprendido, opaco, mudo, perdido. Anseio por uma amnésia longa, capaz de te apagar de mim, porque me sinto louca, sem rumo, ruim.
Na minha boca ficou uma réstia de ti, uns morangos que se tornaram lima. Esbanjo-me, em jeito de despedida, nos momentos imaginários em que andei perdida, momentos contigo... é por eles que sorrio sempre que te vejo e desfilo, como num cortejo. Porque me perdes cada dia mais um pouco. És um louco. E cada dia passa, e passa o tempo em que estive presa a ti, a esta paixão que me invadiu de repente, como um feitiço de um vidente.
Não consegui evitar. Mas também tenho muito amor para dar. E já não te quero para amante, quero-te distante, longe do meu olhar. Quero adormecer e depois acordar. Este é o limite possível de aproximação, não quero sentir, não quero ler, não quero falar nem pensar. Esse jogo perigoso e cruel que praticas comigo, num duelo sangrendo e duro... és meu inimigo, eu desisto de ti, quero parar.
Quero ser livre, apaixonar-me de novo, por alguém verdadeiro, autêntico, que queira arriscar. Alguém que me estremeça com os olhos, me embriague com um beijo quente e me sufoque com um abraço envolvente. Que não me atormente. Que me ame dia a dia e não me veja como um passatempo.
Conseguiste o teu feito heroico, a batalha tribal. Fazes-me mal. Eu não sou um terreno para conquistar. A conquista é inutil e fria. Eu não sou vazia. Choro, rio, grito. Não fiques aflito. Já abri os braços e deixo-te ir. Já não me consegues seduzir.
Hoje quero encontrar o caminho. Aquele que se percorre sozinho e não tem fim. O da minha felicidade. Qualquer que ele seja, sei que já não depende de ti, mas de mim.
E estas são as palavras, as últimas, que eu nunca te escrevi".
Texto escrito para a Fábrica de Histórias.