Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]
«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Não te entendo
"Não te entendo" repetias desesperado.
Eu repetia novamente, soletrava na minha língua. Repetia depois na tentativa de pronunciar a tua língua, ou noutra que poderíamos compreender os dois.
Mas música abafava a voz rouca e as bocas entregavam-se desamparadas, sedentas, esquecendo as palavras que surgiam desconexas, sem sentido.
Ali estávamos nós, confusos, um em frente ao outro, deixando que os corpos traduzissem os sentidos.
"Quem és tu?" pensava em breves segundos enquanto me perguntavas algo também ao ouvido.
"Não te entendo", olhava-te encolhendo os ombros. Tu encolhias os teus e puxavas-me para os teus braços. Sorrias, e os olhos profundos abraçavam as palavras que não decifravas. Sorriam e vertiam o aroma do improvável, a certeza do impossível. As mãos cegas, deslizavam sôfregas, enfeitiçadas pelo ritmo que vibrava nos corpos incendiados. Corroía de desejo o espírito inquieto, talvez insatisfeito. "Infeliz?" percebi que perguntavas, num olhar penetrante que pedia muito mais do que palavras, num desenrolar de frases seguidas que eu já não compreendia.
Mas tentava. Queria tanto comunicar contigo...
Como podia explicar-te a atracção que sentia naquele momento alucinante?
Não podia. Nem na minha língua o conseguia. O inexplicável seduzia. Não me importava mais nada. Tu cantavas e rias. Enquanto me viravas e reviravas, sentia o teu peito a ferver nas minhas costas, os teus lábios no meu pescoço, perdiam-se na orelha que beijavas enquanto sussurravas ao meu ouvido. Não entendia uma palavra, mas acompanhava os teus passos, por instinto. Porque todos os teus gestos, surdos-mudos, desaguavam num imenso sorriso.
"Desisto", pensei impotente, no cansaço de não me fazer compreender. O meu nome, quem sou, o que faço. Nada. Desisto! Decidi entregar-me em branco, vazia. Como se acabasse de nascer. Aceitaste-me. Aceitei-te. Num pacto gestual inconfundível, tacteámos no escuro. Despidos de quaisquer palavras que nos identificassem e restringissem. Assim éramos um para o outro, dois corpos apenas, sem história, sem rumo, sem futuro.
Não sei como, nem quando, mas um dia procuro-te.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias.