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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
“Sputnik, meu amor”
“Sputnik, meu amor” foi o primeiro livro que li de Haruki Murakami (e depois casei-me com ele para a vida!!)
Perturbante é talvez a primeira palavra que me surge. Viciante é a sensação que deixou depois da última página.
Os ingredientes, misturados numa escrita cativante e repleta de simbolismos, resultam numa história envolvente com personagens de almas inquietantes e desencontradas.
Desde o início invade-me a estranha impressão de conhecer o narrador, como se estivesse sentada num sofá de um bar a conversar com um amigo que não vejo há muito. E é com a mesma indecisão que, ou se pega na bebida, ou se puxa do cigarro, que é trocada por vezes a ordem dos acontecimentos. Mas talvez a ordem aqui não interesse para nada.
Durante a conversa ele fala-me do conforto do amor, da intensidade do desejo e da amargura da solidão, tendo como ponto de partida e de chegada a sua amiga Sumire. Aquela que ama e deseja desmesuradamente. Aquela que lhe foge por entre os dedos, silenciando o seu mundo e roubando-lhe a cor.
Mas na história ele é apenas um, dos três seres solitários que orbitam como satélites uma rota paralela, ora em busca, ora em fuga, de si mesmos e uns dos outros.
Através das suas palavras vejo claramente, como se estivesse na minha frente, a fragilidade voraz de Sumire: uma figura delgada com orelhas perfeitas e de sobrolho franzido. E sinto, incomodada, a frustração do desejo que transpira por ela, como boomerang, vai e volta, em convulsões amordaçadas.
É pelas palavras de Sumire que primeiro conheço Miu, a mulher que a arrebata de paixão: um ser misterioso que é desbravado ao longo da história que me conta. Surpreende-me o retrato pintado dela pelas palavras apaixonadas de Sumire, um ser forte e sofisticado, em oposição à Miu que ele me descreve, um ser belo e simples mas ausente de vida, como “uma concha vazia”.
O pano de fundo da sua história é uma viagem onde ele acaba, imprevisivelmente, por entrar. E pelas suas palavras dou por mim a vaguear nas encostas da ilha grega, repleta de mistério e magia, onde descreve cada local, como se de um ser vivo se tratasse.
Tudo o que sente é reflectido em lugares quotidianos. Miu lembrou-lhe “um quarto vazio depois de toda a gente se ter ido embora”, eles aproximaram-se com cumplicidade “como qualquer jovem casal de amantes que se despe em conjunto”.
A certa altura, sou inesperadamente agredida pelo seu abandono da vida. Ele inflige-se numa morte interior, mergulhando no silêncio abrupto das recordações.
No final da história, fico com a sensação de quem bebeu a noite inteira e já não sabe onde está. Confusa, páro para pensar. Também o meu amigo já não se encontra no bar. É apenas um reflexo num espelho.
- De alguma forma conseguiu trespassá-lo, para encontrar-se novamente no outro lado, onde o mundo voltará a ter cor.
Foi isso que pensei quando saí pela porta do bar.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias.