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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Faz quase um ano que a Fábrica pediu explicitamente para "não contar uma história de amor" e eu, obediente, não contei, aqui.
Hoje pedem-me para contar uma história de amor... então eu vou desvendar o resto da história que ficou por contar!
A história de amor por contar
Porque a vida não é uma história de amor, ela preferia não contar.
Guardava para si o abalroar de recordações do acidente que a atropelou. O passado que se fez presente, de repente. O destino que o trouxe nos abraços novamente, para o levar pouco tempo depois.
Numa avalanche de emoções, ele voltou sem avisar, jorrando a loucura dos improváveis, desejos de insatisfações. Como antes, a intensidade dos instantes impossíveis, a tortura das despedidas. Tudo outra vez, em ebulição.
Recostava-se para trás no velho cadeirão, puxava a manta de xadrez vermelho e bebia mais um golo do chá, já frio. Sente um arrepio, do tempo que faz lá fora, ou seria dos quilómetros de tempo que os separava agora. O silêncio mórbido que o destino lhe impôs.
Recordava os seus olhos meigos avelã e a sua voz aveludada. Sentia-se aconchegada. As pernas compridas e desengonçadas que nas dela entrelaçava. O sorriso espontâneo, que lhe rasgava o olhar, as músicas que lhe cantava ao ouvido sem parar. Tantas memórias de noites ao relento acordados, onde o céu era tão perto quanto o calor dos corpos abraçados.
«Onde estás?» perguntava agora, perdida num labirinto de contradições, angustiada.
Ali, longe de tudo, no tecto do mundo, sentia-se simultaneamente prisioneira e abandonada. Das horas que perpetuavam o espaço, as que antes lhe esculpiram o corpo com lábios quentes e a envolveram num eterno abraço. Respirava com dificuldade. Porque a realidade e a tristeza galopavam ao mesmo passo, lado a lado. E o caminho que escolhera era irreversível, para sempre enevoado.
Tudo era tão pouco, tão efémero. A frustração de perder de novo, a sensação que nunca o teve, antes de o deixar. Era uma triste história de amor, partida em mil pedaços por colar.
«Doí-me o peito viver sem ti, sabendo que existes, aí » solta em palavras humedecidas pelo frio do ar.
E sente que ele um dia vai voltar, sem dizer nada, sem avisar. Mesmo sem compreender, sabe que lhe abrirá os braços, cansados, de procurar refúgios para o vazio que só ele pode preencher.
Escrito para a Fábrica de Histórias