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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
História sem final
Este é um livro que eu comecei mas não sei se vou terminar.
Eu durmo na cama 13, da ala Norte de um Hospital Psiquiátrico abandonado no meio de um mato a perder de vista. Não sei há quanto tempo aqui estou, nem como ou porquê aqui vim parar. Não me lembro da última vez que alguém me veio visitar e, a par das enfermeiras de batas brancas e dos médicos que me vêm medicar, apenas tenho por companhia os indivíduos das camas a meu lado.
Esta é uma ala mista e suspeito que é onde são largados os casos sem qualquer possibilidade de recuperação. Do meu lado direito, na cama 12, está uma mulher de trinta e tal anos que passa o dia com phones nos ouvidos. Esse pormenor não teria relevância se os phones estivessem ligados a algum aparelho de rádio ou música. Mas não, o fio está solto. A maioria das vezes está de olhos fechados e penso seriamente se estará sob efeitos de drogas.
Do lado esquerdo, na cama 14, está um homem também de trinta e tal anos, talvez um pouco mais velho do que ela, pela maneira coloquial como fala. Tem ao seu lado uma espécie de flauta artesanal que ele insiste em chamar de didgeridoo e que toca por vezes, a meio de uma noite insónia, sem qualquer justificação.
São os dois muito estranhos, mas o mais estranho ainda é a relação dos dois. Eles chegaram quase seguidos, primeiro chegou ela e instalou-se, duas semanas depois chegou ele, com ar saudável e bronzeado que até parecia que vinha de férias.
Este livro que estou a escrever, as páginas que escondo por debaixo da minha cama, é sobre eles, sobre as conversas que têm à noite quando eu finjo estar a dormir.
De um dia para o outro, durante a noite, comecei a ouvir as vozes deles cruzadas por cima do meu sono. A dele grave e calma, a dela mais agitada, atropelava as palavras ao falar. Se não se encontrassem também ali como eu, na ala dos que já não têm saída possível, teria achado as suas conversas esquisitas, a proximidade e intimidade do rumo que tomaram. Mas ali era tudo normal.
São estas conversas invisuais, vividas no escuro, que transcrevo, aqui neste livro, já com mais de 150 páginas. Desde assuntos mal resolvidos da vida deles lá fora, experiências do passado, até ao dissecar de sentimentos e sensações, abertamente, sem vergonha ou pudor. Eles conversam sobre tudo, de tal forma que me atrevo a afirmar que fizeram amor em palavras de tanto que as desejaram, e acabaram por se desejar mutuamente também. Pude sentir-lhes as respirações aceleradas, ofegantes, a voz trémula, os suspiros contidos e as palavras mais inebriantes. Senti-lhes o cheiro do amor.
E finalmente um odor do suor dos corpos. Os mesmos que se escaparam, uma única noite, para uma cama no fundo do quarto. Uma noite onde as palavras passaram a actos e, na escuridão, ouvi a língua mágica do prazer, em gemidos abafados entre o movimento frenético dos corpos que se entregam e fundem.
Depois dessa noite não se encontraram mais. As conversas tomaram um rumo cada vez mais intenso, viciado, delirante, de tal forma que se esqueceram completamente da minha presença e passaram a conversar em voz alta, noite e dia. Um diálogo repleto de contradições e dúvidas, divagações, próprias de quem está obviamente em tratamento e sob o efeito de vários comprimidos.
Até ao dia em que se confrontaram com uma corrosiva discussão. Voaram almofadas por cima da minha cabeça, garrafas de água rasaram o meu corpo. Algum mal entendido ou incompreensão. Ou a causa mais natural, a instabilidade que um doente desta ala sofre naturalmente, e por isso mesmo diz coisas que nunca devia dizer. Nesse dia ele saiu do quarto irado e, até agora, não regressou.
Ela voltou a colocar os phones soltos nos ouvidos, a entregar-se à tristeza do seu sono profundo, isolada de tudo.
Agora tenho aqui esta história decepada sem final. Um livro inacabado, à espera dele voltar.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias