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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Primavera inventada
Foi ali, naquele lugar mágico, que foi inventada.
Onde as flores brotavam sorrisos fora dos canteiros, as árvores curvavam os braços para oferecer sombra e as conversas dos pássaros embalavam os nossos corpos espreguiçados na relva. O aroma de felicidade era disseminado num arco-íris de cores inebriantes, povoando os campos até perder e vista.
Foi inventada numa manhã onde se abria as portadas verdes ao céu imenso e o sol rompia brilhante pelos vidros da janela, aquecendo os nossos corpos desarrumados na cama. Beijavas-me o ombro suavemente e depois subias pelo pescoço. Como quem desbrava uma floresta densa, afastavas os meus cabelos para continuar, num trilho que percorrias demoradamente para me enlouquecer. E eu abria os olhos devagar, com medo que fosse um sonho do qual não queria acordar. Depois sorria extasiada, quando os meus olhos viam os teus. Agarrava o teu braço que me envolvia e abrigava-me no teu corpo como numa concha. Prisioneira de ti, onde eu sempre quis estar.
Foi assim que foi inventada, num alpendre soalheiro de jardim, quando bebíamos uma limonada fresca e falávamos entre risos e gargalhadas. Com aquele ar sério que tu não conseguias convencer ninguém, dizias que ias pescar um peixe enorme «assim, deste tamanho… o maior de sempre». E eu ria, fingindo acreditar que conseguias. Caminhávamos descalços na terra, pisando os trevos que cresciam em tufos pelo jardim. Procuravas sempre um de quatro folhas para mim «um dia encontro» sorrias. Depois, encostados a uma árvore gigante, deitava a minha cabeça no teu colo e olhava o céu deliciada. Não dizíamos nada, mas pensávamos como seria triste se tudo aquilo não existisse.
Foi inventada ao som dos pássaros a brincar entre os ramos, enquanto apanhávamos as maçãs já maduras para uma cesta de verga escura. Pegavas-me ao colo para eu chegar lá bem alto, àquela maçã que eu tanto queria e, quando estava quase, quase sempre caíamos. De propósito, eu sabia. E amuava zangada, só para me roubares aquele beijo apaixonado que não me deixasse qualquer dúvida do que sentias.
Foi num abraço mágico que ela foi inventada. Um abraço quente, apertado. Depois deslumbrou-se no olhar carente que se prendeu no meu. «Para sempre» pensei, tremendo, mas nunca te cheguei a dizer. As bocas renderam-se viciadas no ardor dos lábios, as línguas embriagadas, o sabor da pele. Desfloraram-se os corpos milímetro por milímetro. Amámos para além do prazer.
Chegou o Verão de repente e tu deixaste-me com um «Adeus» sumido, que me derrubou sem avisar. Partiste, sem eu perceber, e levaste as manhãs ancoradas no teu sorriso, na voz doce e quente, como o Verão que acabava de chegar. Num calor sufocante, aceitei sem questionar. A Primavera, a nossa, tinha acabado, para sempre, no dia exacto em que desististe de me amar.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias.