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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Desenhos perigosos
Naquela terça-feira, uma noite escura e de nevoeiro, dei por mim perdida pelas ruelas do Bairro Alto.
Regressava para o carro ao fim dum jantar de aniversário entediante de uma colega do trabalho e estava desejosa de chegar a casa. Os saltos finos prendiam-se irritantemente entre as pedras da calçada, quando dei conta que tinha perdido o meu caderno pequeno de argolas. Devia ter-me caído da mala quando tirei as chaves do carro pelo caminho. Tentei fazer o percurso inverso mas as ruas apareciam-me como espelhos labirínticos de onde perdi completamente a orientação.
Ao fim duma rua, quase na curva, uma porta com um candeeiro por cima chamou-me a atenção. Entrei sem pensar em mais nada. Afastei as cortinas vermelhas da entrada, invadindo-me um bafo quente e apertado de fumo a cigarro ou cigarrilha. Arrastei-me exausta até ao balcão de tábua de madeira corrida, onde um empregado de cabelo rapado e tatuagem no braço olhou-me de cima a baixo desconfiado.
Pedi-lhe um shot “qualquer coisa servia, B52, Ti Maria,…”.
Sentei-me no banco de pé alto e de pele gasta e rasgada, desconfortável com o vestido justo que trazia. Olhei em volta e a sala estava praticamente vazia. Havia um casal de meia idade ao fundo recostado num sofá russo de aspecto bolorento. Ambos bebiam whisky e pareciam embalar as cabeças ao ritmo dos acordes tristes do piano tocado por um senhor negro. As suas feições marcadas pela avançada idade eram angustiadas e personalizavam a música que parecia despir-lhe a alma.
Veio o B52 num copo estreito a arder. Estendeu-me uma palhinha curta e esboçou-me um sorriso que me paralisou. Lembrou-me do meu caderno perdido. Eu já tinha desenhado aquele sorriso, ou outro sorriso de outro homem qualquer.
Bebi de um trago, deixando o álcool percorrer-me todo o corpo, queimando-me numa espécie de masoquismo que me agradava. Senti uma ligeira tontura, estava a surtir efeito. Devolvi-lhe o sorriso e pedi-lhe piscando-lhe o olho:
- Outro.
- Para mim também – insurgiu por trás de mim uma voz rouca familiar
- Por aqui? – Perguntei espantada enquanto ele se sentava a meu lado.
Ricardo é um solteirão de 32 anos que gasta todo o dinheiro em viagens pelo mundo e saídas com os amigos. Mora sozinho na Expo com o seu cão, um Huskie com 3 anos, num apartamento sofisticado no 10º andar, mobilado com pouco móveis, todos rectilíneos e modernos. Pára pouco em casa e a cozinha parecia ainda por estrear. Conhece gente de todos os cantos do mundo, fala inglês, francês, espanhol, italiano e alemão e ganha a qualquer pessoa num concurso sobre capitais.
Disse-me que era programador informático e que passa o dia inteiro numa secretária em frente a um monitor. Nunca o consegui imaginar em tal emprego. O seu corpo alto e bem delineado, de quem frequenta regularmente o ginásio, numa pele morena, torna-o popular entre as mulheres. Talvez por isso não simpatizei com o seu ar convencido quando a minha amiga Leonor nos apresentou. Aos poucos aprendi a gostar dele. De tal forma que, de um dia para o outro, foi como se passasse um furacão e não resisti mais ao seu charme.
- É verdade. Vê lá tu o que eu encontrei por ali na rua… - colocou em cima do balcão o meu caderno de argolas preto, esboçando um sorriso hipocritamente desinteressado.
Ricardo sentou-se no banco do lado segurando o meu caderno repleto de desenhos esboços do seu corpo, traços do seu sorriso.
- Onde o encontraste? – perguntei-lhe irritada.
- Ali caído numa berma da estrada. Alguém deve tê-lo deitado fora – respondeu com desdém bebendo o B52 de uma só vez.
- É meu. Sabes bem… quero-o de volta.
- E posso saber porquê? O que é que está aqui que te interessa? Ah… espera… os desenhos parecem-se comigo, serei eu Joana?
- Deixa de ser ridículo – o fogo do B52 assustou-me mas não me impediu de engolir rapidamente o shot que o empregado colocou-me à afrente.
- Ridícula é a tua reacção, és tu, tudo entre nós… Eu nunca te prometi nada. Ou prometi? Porque fugiste naquela noite pela calada e nunca mais atendeste o telefone?
Enfrentou-me com os olhos que faiscavam. Inspirei fundo na tentativa de disfarçar a voz trémula.
- Porque, porque… - hesitei - tu assustas-me, entendes? Não te compreendo e estou farta de esperar coisas normais de ti…
- Não sei o que são coisas normais Joana, nem me interessa... mas já que estamos aqui hoje, por destino ou não, vamos aproveitar! Brindamos a isso pode ser? – e levantou o braço para o empregado - Olhe, mais dois por favor.
De repente senti um vulto passar-me pelas costas, enfiando algo no bolso do casaco. Com o susto até tossi mas apenas lhe vi as costas desaparecerem pelas cortinas vermelhas da porta, um sobretudo preto até aos joelhos e um cabelo castanho vulgar apanhado num rabo cavalo ao fim da nuca. Foi tudo. Meti a mão no bolso e encontrei um pedaço de papel dobrado que consegui ler de esguelha enquanto Ricardo pedia ao empregado se tinha algo para petiscar.
«A sua vida corre perigo. Fuja. Uma amiga» Manuscrito a esferográfica preta. E era tudo. Estupefacta escondi novamente o bilhete no bolso.
“Quem teria escrito aquela estupidez “ pensava atravessando-me todas as ideias mais estapafúrdias pela cabeça. … O Ricardo perigoso? Ou seria o empregado? Todo aquele cenário mirabolante começava a enervar-me, até o piano que chorava baixinho queixoso… Levantei-me de repente e pedi ao empregado a minha conta.
- Pensas que vais embora assim, sem mais nem menos? – Ripostou Ricardo enfurecido.
- Deixa-me. E podes ficar com o caderno se quiseres – respondi impaciente caminhando em direcção da porta.
- Nem penses que é como tu queres – dizia empurrando-me para trás com gestos violentos que eu desconhecia.
"E se fosse verdade? E se ele fosse mesmo alguem perigoso?" Afinal só o conhecia há meses e a sua vida era um pouco enigmática.
Voltei-me para trás e assustada desci umas escadas à minha esquerda. Os dois lances de madeira, desembocavam numa cave escura, de cheiro a bafio, apenas iluminada por uma luz tímida e amarelada no tecto, e onde um corredor pequeno terminava numa janela com gradeamento. Nas paredes de lado, apenas as casas de banho.
Senti passos atrás de mim pelas escadas e nesse momento o meu coração galopava como um cavalo assustado. Encostada ao fim do corredor, vi primeiro uma sombra que foi ganhando aos poucos nitidez. Era o empregado que parou no fim das escadas, fitando-me de olhos semi-cerrados. Sem mais nem menos, começou a despir a camisa, botão, por botão, devagar. Por momentos senti o meu sangue congelar. Passava-me tudo pela cabeça, que ele era um assassino, que as bebidas tinham droga? Provavelmente ele queria violar-me e depois traficar os meus orgãos.
No seu peito depilado apercebi-me de outra tatuagem do lado esquerdo que ao princípio não consegui ler. “Amo-te Octávio”.
Comecei a ter tonturas, as mãos suavam e a parede atrás de mim gelava-me as costas. Ele continuava a caminhar na minha direcção e quando já estava a dois passos de mim, esticou-me do bolso traseiro das calças o meu caderno de desenhos.
- Será que pode desenhar-me também? – Perguntou de sobrolho levantado ainda com cara de poucos amigos.
Fiquei perplexa sem saber o que dizer. Agarrei o caderno, confusa, e num acto de desespero balbuciei que sim.
- Agora a sério – levantou a voz num tom ríspido enquanto abotoava a camisa – pague se faz favor a despesa do bar porque o seu amigo pirou-se sem pagar.
Escrito para a Fábrica de Histórias