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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Isto não é uma história
Isto não é uma história de amor.
Não há um príncipe encantado, uma paixão arrebatadora ou um coração destroçado. Não há magia, emoção, nem dor. Porque então seria, muito provavelmente, uma história de amor.
Há um espírito inquieto, confuso. Num corpo solitário que foge de si mesmo, incompreendido. Porque nunca se encontra pleno. Porque se questiona sempre insatisfeito e dividido.
Isola-se numa cabana de montanha e contempla a paisagem em redor de um branco imaculado. E pensa, como seria se tudo fosse assim tão claro e límpido como a neve. Sem outras cores misturadas. Um cinzento que a invade naqueles dias em que decide pensar. Depois desmaia num castanho lamacento que lhe bloqueia a razão e um negro persistente, que a corroi por dentro, incapacitando-a de tomar uma decisão.
Se tudo à roda fosse sempre assim tão claro como a neve, tão brilhante como o reflexo do sol.
Aconchega o corpo à manta de xadrez vermelho e apoia o cotovelo no parapeito da janela. Com a palma da mão segura a cabeça cansada e suspira por algo inexistente. Sonhado. Talvez mesmo sem sentido, inusitado.
Bebe mais um golo do chá de lúcia lima quente. O líquido percorre-lhe o corpo frio. Como o frio que está lá fora. O seu corpo é frio, admite triste. Belisca-o sem medo. Nada. Não sente dor. Já há muito que se tornara insensível.
Recosta-se para trás no cadeirão velho de tecido de flores e contempla o céu virgem azul claro da janela. Depois o tecto da cabana atravessado por uma viga escura de madeira onde uma teia de aranha envolve o candeeiro de ferro suspenso. Também assim está ela. Pendurada por fios, frágeis e transparentes, de loucura, de irritação e medo. Teias de indecisão, que a estrangulam em segredo. Como a viga robusta que sustenta a cabana, o seu tronco sustenta a sua alma quando vagueia perdida por entre outros corpos na rua. Há dias em que não dorme, com medo da desilusão de acordar. Os sonhos viciam. Não se quer questionar. Abana a cabeça em sonolência e nega tudo o que quer evitar.
A vida não é uma história de amor, e por isso ela prefere não contar.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias