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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Predestinados até acordar
Quando acordava, revirada para lado esquerdo, sentia um peso a cobrir as suas pernas entrelaçadas, como se algo estivesse enganchado a si. Não era um peso incómodo, pelo contrário, era uma sensação de conforto estranho. O corpo estava agradavelmente quente. Como se uma perna pousasse por cima a noite inteira e um braço contornasse as suas costas. Ficava assim todas as manhãs, por uns segundos, de olhos fechados, absorvendo a ilusão de um corpo ausente abraçado a seu lado.
Dormia sempre meio de lado, atravessado, com a perna esquerda encolhida, enganchada não percebia bem em quê, era macio e quente, deixava-se estar. O braço direito agarrava-se a algo que não via, mas o seu estado embriagado de sono não o permitia questionar. Sonhava feliz aquele momento em que abraçava a noite com uma paixão e onde era penoso o acordar.
Em movimentos programados, ela arranjava-se e corria para mais um dia de trabalho. Seguia o caminho de sempre, com os olhos apontando o vazio, ausentes, não reparava em nada. No homem que distribua jornais, na senhora que vendia flores. Seguia o seu caminho e apenas parava no cais dos barcos enquanto bebia um café quente e sentava-se num rochedo a olhar o mar.
O despertador acordava-o às 7h00. Tomava banho, vestia-se e saía de carro para o trabalho. Ouvia as musicas da rádio distraído, os ohos fitavam o infinito. Não reparava em nada. No condutor da frente que lhe acenava pelo espelho, no homem que distribuía publicidade junto ao semáforo. Parava apenas uns minutos junto ao cais dos barcos, bebia um café quente e deixava-se ficar encostado a olhar o mar.
Por vezes o telefone dela tocava de um número desconhecido, uma voz quente e familiar. «Estou?»dizia «Sim?»perguntava «quem fala?»
« João» respondia. Ela não conhecia. «É engano» Lamentavam ambos desiludidos, desligando sem questionar.
Ele tinha um número de telefone na cabeça, para o qual por vezes ligava sem pensar. «Estou?»ouvia numa voz que o enlouquecia «quem fala?» perguntava a voz doce e familiar.
« João» respondia. Ela não o conhecia. Ele também não sabia quem seria. «É engano» lamentavam ambos desiludidos, desligando uma vez mais.
Recolhiam-se, entre os risos dos amigos, esquecendo o rumo que a vida podia tomar. Deixavam seguir o curso, alheios num balcão de um bar.
«Um vodka com laranja» pedia ela ao empregado. Ele pedia «Um whisky cola» sentado ao balcão num banco alto.
Bebiam de um trago, como se o líquido fosse um veneno fatal. Um bilhete para o espaço, para uma realidade virtual.
Ela olhou para o banco ao lado e sorriu ébria. Ele devolveu-lhe o sorriso com um brinde a algo que não percebeu o significado. Não importava. Brindou enfeitiçada. Como se toda a gente à volta tivesse desaparecido de repente, até o empregado do bar. Apenas estava ele ali sentado ao lado. Apenas estava ela ali a sorrir descontrolada.
«João» dsse-lhe numa voz quente aveludada.
«Rita» sussurrou-lhe ao ouvido, mordiscando-lhe a orelha e rindo «eu não te conheço». Um diálogo que cedo ía acabar.
«Não. Nem eu» respondeu-lhe, roubando-lhe um beijo sem perguntar.
Levou-a a casa no seu carro, um 1º andar sem elevador, onde acabou por ficar. Entregaram os corpos embriagados e acabaram deitados, ele revirado de lado com a perna esquerda por cima das dela entrelaçadas e o braço a enlaça-la num abraço apertado invulgar. Acordaram com a boca seca do alcool e o corpo exausto. Enrolados, como um nó apertado, estranhamente familiar, os rostos prendiam-se um no outro, os olhos questionavam sobre o que se estaria a passar. Levantaram-se embaraçados. Ele vestiu-se e saiu apressado deixando-lhe o seu número de telefone. Ela sorriu e fingiu que lhe iria telefonar.
Junto ao cais, ele tinha aquele número na cabeça, a martelar. «Estou?»ouviu a voz que o enlouquecia, e ao longe podia ouvir um marulhar «quem fala?» perguntou. «Rita» respondeu baixinho, confusa. «É o João, tenho de te encontrar».
Texto escrito para a Fábrica de Histórias