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«Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, irremediavelmente afastados« Haruki Murakami
Dia de cão
Acho que a minha vida tem sido um amontoado de coisas mal resolvidas. Travadas, perdidas, estagnadas no tempo. Como se à sua frente houvesse uma espécie de abismo qualquer. Ficaram lá a baloiçar, amparadas pelo vento. Ficaram ao relento. Confusas, mal entendidas, às escuras num beco sem saída.
Talvez eu padeça de uma doença rara, de investigação prolongada e esquecida no calendário. E ninguém me compreenda, veja o mesmo que eu, fale a mesma língua. Ou então sou só eu. Assim, desenfreado, angustiado, sempre a querer mais e mais da vida.
Nunca parei, por um segundo sequer, para pensar no caminho. Segui o instinto, pronto, farejei um pouco, e corri como se não houvesse limite. Andei por aí, muitas vezes perdido. Esfomeado, com frio. Mas nunca pensei onde iria, o que faria, no dia seguinte. Acho que me deixei ir. Sim, deve ter sido isso. Talvez por isso toda a minha vida tenha sido um enorme mal entendido. Tudo trocado, em convulsão. Sem eira nem beira e eu nem percebia a razão.
Talvez seja paranóia minha, ou é a imaginação. Deva parar de vez em quando, pensar um pouco. Ou talvez não. Talvez seja mesmo esta a minha natureza vadia e rebelde. Sou teimoso, indomável, orgulhoso, não sei ancorar o coração. As coleiras sufocam-me, causam-me estranheza, irritam o pêlo provocando alergia e dor. Mas agora apanhei aquele vírus maldito. Esse mesmo. A Paixão é um predador. Deixa-me nervoso e a fervilhar. Ridículo só de a ver passar. Fico zonzo com o seu odor. E sai um latir rouco, meio entubado, em vez de um ladrar encantador.
Troco as patas desajeitado. Fecho os olhos envergonhado, de orelhas e focinho caídos no chão. Estou doente. E a ter um dia de cão.
Texto escrito para a Fábrica de Histórias.