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Fábrica de Histórias

por Closet, em 25.09.11

 

Doce calma

 

"Por todo o atelier pairava o aroma intenso das rosas e quando a branda aragem estival corria por entre as árvores do jardim, entrava pela porta a fragrância carregada do lilás, ou ainda o perfume delicado do espinheiro de floração rósea. Estendido no divã de bolsas de seda persas, a fumar, como era seu costume, cigarro após cigarro, Lord Henry Wotton só conseguia vislumbrar do seu canto as flores adocicadas e cor de mel de um laburno, cujos ramos trémulos pareciam mal poder suportar o peso de beleza tão fulgurante." (o Retrato de Dorian Gray de Oscar Wilde)

 

Por baixo da árvore, a ler um livro, Sophie irradiava um brilho mais forte do que a própria luz solar. A pele clara delicada, os olhos verdes esmeralda e os canudos dourados que lhe desciam pelo pescoço esguio até ao busto, toda ela, parecia fazer parte da paisagem Os seus tenros 18 anos eram, na verdade,  a paisagem, a terra dos seus sonhos, o baú das suas memórias. 

Lord Henry Wotton detinha-se todas as manhãs a contemplar a doçura serena de Sophie. Desejava-a seguramente. Com todo o ardor dos seus sentidos, sem limites de sofreguidão. 

Ela lia cerca de 20 páginas por dia, podia contá-las sem pestanejar. Depois fechava o livro e ficava ali sentada, a fitar uma espécie de infinito que a sugava. Podia sentir o ar que lhe enchia o peito, em movimentos ritmados. Ela sonhava o mundo. Dos seus 18 anos a vida era um caminho de eternidade. Ilimitada. Absoluta. Podia ler-lhe, nos lábios rosados carnudos, os beijos mais volentamente roubados. Aquela boca virgem era por si só uma fonte de pecado.

Sophie tinha nos seus movimentos, mesmo nos pequenos gestos, a fórmula dos deuses da majestosa juventude. Transparecia nela a calma etérea de quem não tem pressa, de quem sorve demoradamente cada gotícula de prazer. A vida era dela, e ela, para Lord Henry Wotton, era a essência da vida. Era através dela que as suas pernas cansadas corriam, os seus braços lentos abraçavam e com uma força sobrenatural a pegavam no ar pela cintura fina. Com ela dançava sem parar.

Lord Henry Wotton vivera depressa, pensava agora quando os seus 60 anos injectavam-lhe nas veias o freio dos movimentos e a impotência da sedução. Vivera sempre o limite. Tivera tudo, o luxo, o requinte, a magia, a loucura, o sofrimento e a agitação. Viveu numa espécie de corrida de automoblismo, sem cintos, sem capacetes, sem nada. Sentiu o vento como a liberdade e sem fôlego aproveitava cada segundo de euforia. Não se deu a ninguém, porque essa dádiva era, também ela, uma paragem, um estagnar da velocidade que necessitava para respirar. Não se entregou verdadeiramente a ninguém, talvez por isso não sabe, hoje, se alguém foi verdadeiramente dele. Nunca teve tempo para ter ou ser de alguém.

Hoje detém-se a contemplar a tranquilidade de Sophie, desejando-a secretamente como nunca. Encontra nela o elixir de juventude, na sua doce calma, na virgindade do seus lábios mornos, na puresa dos seu olhos esmeralda. Acredita, convicto - enquanto solta uma baforada e pousa o que resta do cigarro - o mundo passou por cima dele como uma trovoada. Era agora, no rio tranquilo de Sophie, que navegava sem rumo a sua agitada alma.

 

Texto escrito para a Fábrica de Histórias

 

publicado às 22:42


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