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Ilustres desconhecidos

por Closet, em 11.05.11

E como me "acusam" de escrever sobre personagens que falam do seu passado, aqui estão dois que acabam de se conhecer :)

 

Retalhos - O Vasco 

 

Nunca gostei de táxis, mas devo admitir que aquela foi a ideia mais brilhante que tive nos últimos dias. Não conhecia aquela zona do Bairro Alto e estou certa que jamais conseguiria encontrar aquela ruela escondida, muito menos estacionar por lá. Aquele Bar passava completamente despercebido, entre as casas antigas de uma rua estreita sem qualquer movimento. Era pequeno, uma única sala hexagonal, com cerca de sete mesas. Tinha um balcão pequeno ao fundo onde um empregado preparava um shot para um cliente enquanto conversavam. Junto às paredes do lado direito havia dois sofás de veludo escuro, com mesas baixas rectangulares e pequenas velas dentro de cinzeiros de vidro redondos. Ao centro as mesas eram altas de metal, com cadeiras de ferro. Havia apenas duas vazias, as restantes eram ocupadas por grupos de 4 e 6 pessoas com aspecto de estudantes, que conversavam e fumavam. A iluminação era fraca, feita por candeeiros pendurados no tecto escuro. Ao fundo, um homem com cerca de cinquenta anos tocava ao piano algo que me pareceu jazz. Nunca fui entendida em música, mas os acordes fizeram-me lembrar Nat King Cole, ou algo do género.

Ainda era cedo, faltavam 15 minutos para as 22h. Pedi um Gin tónico no bar e sentei-me num sofás, de frente para a porta. Aumentava dentro de mim uma sensação absurda de ansiedade. Devia ser esta a sensação de um blind date, porque na verdade combinámos o “encontro” por telefone de uma forma quase surreal.

- Olá, estou a falar com a Sofia?

- Sim… - respondi

- Eu sou o vizinho da Carla, quer dizer, o ex-vizinho, … eu fiquei com o seu contacto para lhe entregar uma encomenda que ela estava à espera... – continuou a voz rouca.

- Sim, sim – lembrei-me de repente - O do 3º Dto, certo?

- Vasco.

- Certo – confirmei - o do 3º Dto.

- Como queira, mas prefiro que me tratem por Vasco – respondeu já com voz de pouca paciência.

- Desculpe, não era isso que queria dizer… - tentei desculpar-me - A Carla avisou-me sim, que estava à espera de uma encomenda, deduzo que já chegou.

- Sim, tenho aqui uma caixa em nome dela, penso que seja isto. Como posso fazer para entregar-lhe?

- Humm… eu trabalho em Paço de Arcos, fica longe para si?

- Sim, completamente…eu estou o dia todo em Lisboa.

- Então… - fiquei a pensar o que fazer com aquela rapidez de raciocínio que nos momentos necessários me foge e ainda hesitei uns “humm, aaa,…” até que arranquei – Bom, não faz mal. Eu vou ter consigo a Lisboa, mas tem de ser ao fim do dia, pode ser?

- Depende. Eu trabalho até às 21h30, só se combinarmos a essa hora num bar aqui perto do meu trabalho.

- Num bar? – apanhou-me de surpresa

- Oiça, é um local público, no Bairro Alto, o Nuts na Rua da Vitória. Conhece?

- Pode ser…- senti-me uma adolescente ridiculamente nervosa -  Não conheço mas não se preocupe, eu chego lá. Pode ser esta 5ªfeira?

- Combinado então às 22h - Até 5ª! – Rematou.

E desligou. Nem tive tempo de perguntar como ele era nem como o iria reconhecer… Telefonei à Carla, que tinha-se mudado para Londres há duas semanas, e pedi-lhe uma descrição do seu simpático e prestável vizinho…

- Olha não é loiro nem moreno, nem muito alto, talvez um bocadinho, não sei bem anda sempre meio curvado, tem um ar assim meio estranho, sabes? Mas é educado – apressou-se a dizer -  só que parece… Sei lá? Tem sempre a camisa meio aberta e por fora descaída, calças sem bainha a roçar o chão…Olha, tem ar de artista, sim, acho que é isso, dá aulas de qualquer coisa relacionada com arte.

Admito que, depois daquele telefonema esclarecedor, a minha já pouca vontade de encontrar-me com aquele sujeito diminuiu drasticamente. Mas lá fui, naquela noite arranquei o corpo quente do meu sofá, onde devorava séries americanas junto à lareira, para uma rua gelada do mês de Novembro.

E foi uma batalha difícil. Estava numa fase introspectiva, não queria conhecer ninguém, nem queria ninguém na minha vida. Tinha-me obrigado a uma espécie de solidão forçada para pensar. De alguma forma senti que precisava de encontrar-me comigo. Conversar-mos a sós. Compreender-me, para então poder compreender e aceitar novamente alguém na minha vida. Tinha decidido que nesse Inverno iria hibernar, só sairia para aniversários e o mínimo possível de eventos sociais.

Como por destino, lá estava eu, naquela 5ª feira à noite, sozinha num bar desconhecido a beber um Gin Tónico e sem fazer a mínima ideia de como seria a criatura que iria aparecer-me pela frente. “Pelo menos deveria transportar uma caixa debaixo do braço, talvez assim seria fácil de reconhecê-lo”, pensei tentando animar-me.

Os meus olhos viajavam pelos dedos do pianista quando o toque do meu telemóvel fez-me dar um salto. Vasculhei na minha mala (admito que é nestas ocasiões em que nos apercebemos que é de facto demasiado grande), quando ele parou de tocar.

- “Raios parta!” - Guinchei irritada.

Foi nessa altura em que ele apareceu na minha frente a sorrir, como num filme de cinema :

- Olá, eu sou o 3º Dto, posso me sentar?

Não consegui esconder um sorriso embaraçado. Tirei a mala de cima do sofá e acenei afirmativamente. Vestia umas calças largas de ganga russa e uma camisa em tons castanhos por fora. Por cima apenas um blusão de cabedal preto. O cabelo castanho-escuro era liso, um pouco comprido e caia-lhe em farripas pelos olhos, algumas já presas por trás das orelhas.

Pediu um Gin com limão para me acompanhar e perguntou-me o que achava do bar.

- Simpático, acolhedor… não percebo muito de música mas estou a gostar.

- Toca-se vários estilos. Agora é Jazz. – Respondeu contente com a minha crítica - O bar é de um amigo meu. Ajudei-o a montar o espaço, e pintei os quadros que estão por aqui - e apontou para as telas nas paredes.

- Pintor, portanto?

Riu-se e abanou a cabeça, furando a rodela de limão com uma colher de pé alto.

- Sou um arquitecto free-lancer, explorado, professor de Desenho em horário pós-laboral e pinto por prazer.

Não pude deixar de simpatizar com a sua sinceridade. Fisicamente não tinha de facto nada de especial, nenhum traço saliente, olhos e cabelos castanhos, pele clara, já com algumas rugas de expressão em volta dos olhos e na testa. “Tinha talvez perto de 40 anos”, pensei…mas era absolutamente normal. Contudo havia algo nele  que me prendia a atenção, Acho que eram as mãos, a maneira como falava com elas. Compridas, de dedos esguios e bem cuidados. Elas pareciam falar também, dançando ao som das palavras.

Foram também as suas mãos que me puxaram de repente para ver de perto um quadro. Segurou-me a mão como se fosse uma criança e não tive reacção senão acompanha-lo.

- Vou mostrar-te o meu preferido – e levou-me por entre as mesas do bar.

Pendurada numa parede junto ao pianista estava uma tela quadrada, talvez 90x90cm, com traços e relevos irregulares. “Provavelmente uma mistura de técnicas”, pensei sem dizer uma palavra. À primeira vista parecia-me um jogo de sombras abstracto.

- O que vês? – Os seus olhos brilhavam por detrás dos óculos finos de armação de metal.

- Ahh… - Hesitei nervosa - Não sei bem…

- Não tenhas pressa, podes tocar -  Fugiu para trás de mim, tapou-me os olhos com uma mão e com a outra agarrou-me na mão esquerda e segurou-a contra a tela. A pele suave das suas mãos nos meus olhos contrastava com os relevos da tela que tocava ondulando com a sua mão por cima. Arrepiei-me, num misto de ansiedade e medo.

- O que viste? – Perguntou novamente, destapando-me os olhos e largando-me a mão.

- Pele - saiu-me assim sem pensar - Pele suave.

Ele contemplou-me com um ar sério, por segundos que pareceram eternos. Arrependi-me naquele mesmo instante de ter dito aquilo, na verdade foi o que senti e não o que vi e estava longe de decifrar arte em braille. Finalmente, as feições dele assumiram um sorriso rasgado, que lhe mudavam a expressão.

- É isso mesmo - exclamou satisfeito - São vários corpos entrelaçados, vestidos apenas de pele.

(...)

publicado às 00:29


2 comentários

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De Natacha a 12.05.2011 às 15:54

Tenho passado e lido os teus textos :) estás bastante activa o que é muito bom para quem, como eu, gosta tanto de te ler...

Acho que estou a precisar de um desconhecido na minha vida hehehe


Um beijinho
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De Closet a 12.05.2011 às 18:03

Natacha, com o que tenho pela frente para escrever, e mais um curso de poesia em que me inscrevi, digo-te: não estou tão activa como devia!!
Mas pronto, apresento-te este ilustre desconhecido (já que não vai ficar com a Sofia, adianto-te): é solteiro, e, mesmo nãop tendo nada de "especial" (ok define especial??) é um ser estonteantemente sensível!! é a minha personagem 4 dos retalhos que estou a reescrever para ver dá em aguma coisa!Beijocas

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